Os trabalhadores, contratados para atuar em propriedades vinculadas às vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi, ficaram nacionalmente conhecidos como os "escravizados do vinho" após serem resgatados em situação análoga à escravidão.
A sentença foi proferida pelo juiz Silvionei do Carmo, da 2ª Vara do Trabalho de Bento Gonçalves/RS, que reconheceu a ocorrência de graves violações, como trabalho forçado, violência, servidão por dívida e alojamentos precários, caracterizando o crime de submeter pessoas a trabalho análogo ao de escravo.
De acordo com a Ação Civil Coletiva movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), os trabalhadores foram aliciados na Bahia com promessas enganosas e transportados ao sul do país, onde enfrentaram condições de vida extremamente precárias. Durante a fiscalização, foram encontradas cerca de 250 pessoas em um alojamento com capacidade para apenas 67. Embora nem todos tenham sido incluídos formalmente na ação, 210 vítimas foram identificadas e contempladas no pedido de indenização.
O local apresentava condições sanitárias deploráveis e indícios de violência: foram encontrados spray de pimenta, arma de choque e cassetetes. Os trabalhadores estavam com documentos retidos, não recebiam salários regulares e eram forçados a comprar alimentos superfaturados em comércios ligados à empregadora — contraindo dívidas que os impediam de deixar o local. Houve ainda denúncias de jornadas exaustivas, que ultrapassavam 16 horas diárias, ausência de contratos formais de trabalho e vigilância armada nos alojamentos.
A Fênix Serviços Administrativos negou qualquer prática ilícita. Alegou que o alojamento dispunha de estrutura apropriada, incluindo camas, ventilação e refeições fornecidas por empresa especializada. Também sustentou que os descontos nos salários eram adiantamentos previamente autorizados e que os trabalhadores tinham liberdade de ir e vir.
Sobre as imagens que revelaram o estado do local, a empresa afirmou que o imóvel teria sido depredado pelos próprios trabalhadores antes da chegada da fiscalização.
O que caracteriza o trabalho análogo ao de escravo segundo a legislação brasileira?
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, configura-se trabalho análogo ao de escravo quando o trabalhador é submetido a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas, restrição de locomoção por qualquer meio (inclusive retenção de documentos), ou ainda se encontra em situação de servidão por dívida. Esses elementos foram reconhecidos pela Justiça no caso em questão, com base nas provas coletadas pela fiscalização e no relatório do Ministério Público do Trabalho.
Segundo a decisão do juiz Silvionei do Carmo, os fatores determinantes para caracterizar a prática ilícita, foram o alojamento superlotado e insalubre (250 pessoas em local com capacidade para 67); a retenção de documentos e ausência de pagamento de salários; a jornada de trabalho superior a 16 horas; a comercialização forçada de alimentos com preços abusivos; a presença de instrumentos de repressão, como cassetetes e armas de choque, além da vigilância armada sobre os trabalhadores.
Entenda a responsabilidade da empresa terceirizada
A responsabilidade da empresa contratante e da terceirizada em casos como este é tema recorrente na jurisprudência trabalhista. Ainda que as vinícolas não tenham figurado diretamente como rés no processo, a Fênix, como fornecedora de mão de obra, foi considerada diretamente responsável pelas condições impostas aos trabalhadores.
Para o advogado João Valença, especialista em Direito Criminal do escritório VLV Advogados, “a responsabilização da empresa terceirizada não exclui eventual apuração penal e cível em desfavor das tomadoras do serviço, especialmente diante de indícios de coautoria ou conivência com o regime de exploração.”
A responsabilização criminal pode ir além da esfera trabalhista
A prática de reduzir alguém à condição análoga à de escravo é crime previsto no artigo 149 do Código Penal, com pena de reclusão de 2 a 8 anos, além de multa. Se houver agravantes, como violência ou retenção de documentos, a pena pode ser aumentada. Além disso, também podem ser apurados crimes conexos, como tráfico de pessoas e lesões corporais.
Nesse cenário, os responsáveis, inclusive os empregadores diretos e eventuais sócios da empresa, podem ser denunciados pelo Ministério Público e responder criminalmente, além das penalidades trabalhistas e administrativas.
Os trabalhadores foram lesados no Direito ao salário digno (art. 7º, X da CF); à jornada legal (art. 7º, XIII da CF); à moradia adequada durante o contrato (princípios da dignidade e segurança); à liberdade de locomoção e à livre contratação,assim como à integridade física e moral.
Nesses casos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem função essencial na defesa dos interesses difusos e coletivos dos trabalhadores e pode atuar na fiscalização, instauração de inquéritos civis, proposição de ações civis coletivas e firmamento de termos de ajuste de conduta (TACs). No caso dos trabalhadores da Fênix, o MPT foi o autor da ação que resultou na condenação da empresa, o que representa um marco importante na responsabilização civil de empresas por práticas análogas à escravidão.
Ainda que o Brasil tenha avançado no combate a essas violações, situações como essa demonstram que a terceirização sem controle adequado ainda pode servir como instrumento de precarização laboral. Para o advogado João Valença, do VLV Advogados, “a decisão reforça que a dignidade da pessoa humana é um valor central no Direito brasileiro. Não basta fiscalizar: é preciso punir severamente as empresas que compactuam com a degradação humana sob o pretexto de eficiência econômica”.
A sentença, ao fixar uma indenização milionária, envia um recado claro ao mercado: práticas de exploração laboral não passarão impunes. Além disso, sinaliza a abertura para responsabilizações penais e outras ações civis contra empresas beneficiadas direta ou indiretamente pela mão de obra em situação de escravidão moderna.
Gabriela Matias, jornalista, redatora e assessora de imprensa, graduada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). INSTAGRAM: @gabrielamatiascomunica https://www.instagram.com/gabrielamatiascomunica/
Com informações de publicações em diversos sites, como https://vlvadvogados.com/ e site de notícias https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/04/29/trabalho-analogo-escravidao-fenix-terceirizada-vinicolas-rio-grande-do-sul.htm