Não bináries seguem invisibilizades mesmo dentro da comunidade trans

No Mês da Visibilidade Trans, não bináries reivindicam reconhecimento e direitos

Janeiro marca o Mês da Visibilidade Trans, com o dia 29 sendo o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi estabelecida em 2004, após uma campanha do Programa Nacional de IST/Aids do Ministério da Saúde que trouxe à tona a necessidade de respeito às travestis e demais pessoas transgênero. Entretanto, mesmo dentro da comunidade trans, pessoas não bináries ainda enfrentam dificuldades no reconhecimento de sua identidade e direitos.
 

Foto: Reprodução
Bandeira Não Binárie

O que é ser não binárie?

Pessoas não bináries não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres e podem ter identificações variadas, como gênero fluido, agêneres, bigêneres, entre outras. A identidade não binária está dentro do conceito guarda-chuva da transgeneridade, pois tais indivíduos também não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer. No entanto, a invisibilização e a falta de reconhecimento legal dificultam sua inclusão plena na sociedade.

A história mostra que identidades de gênero fora do binário sempre existiram em diversas culturas. Povos como os Mahu, na Polinésia, os quariwarmi, no Império Inca, e os Two-Spirit, na América do Norte, tinham espaço em suas sociedades. No entanto, a colonização europeia apagou muitas dessas existências e impôs o binarismo de gênero.

Em entrevista ao Portal AZ,  Ayan Beatrix, psicologue, artista, produtor cultural e de audiovisual, conta um pouco sobre sua vivência como pessoa não binárie, e ressalta os desafios sociais.

Foto: Reprodução | Instagram | @trix.gomes
Ayan é pisicologue e mestrande em antropologia. Como produtore cultural e artivista dissidente, integra o Coletivo 086 e a Bixaria Crew.

Para Ayan Betrix Pereira Gomes (Trix Gomes), psicologue, mestrande em antropologia e trans não binárie, a luta pelo reconhecimento da identidade vai além da questão pessoal: 

“Os maiores desafios para população não binária no Brasil primeiro é o reconhecimento da identidade de gênero, acho que a população não binária ainda está buscando esse reconhecimento, embora a não binariedade não seja uma coisa nova. E agora a gente está começando a reivindicar politicamente os nossos direitos, a saúde, a educação, direito ao nome, direito ao nosso gênero.

O Brasil ainda não reconhece de forma legal o gênero não binário, mas alguns estados do Brasil já reconhecem e já fazem retificação de pessoas não binárias, incluindo o gênero não binário. Aqui no Piauí a gente tentou fazer uma retificação de pessoas não binárias, junto a Defensoria, procurando o Tribunal de Justiça, mas foi negado. A resposta que a gente teve, isso em 2022, foi que só seriam reconhecidas pessoas não binárias  quando o CNJ reconhecesse legalmente e formalmente o gênero não binário. Muitas pessoas não binárias acabam indo na rota de fuga de retificar unicamente o nome, ou fazer a mudança para feminino ou masculino.”

Com relação ao mercado de trabalho, o pisicologue Ayan enfatiza  “Sou pisicologue e trabalho majoritariamente com pessoas trans, travestis, transgeneres, homens trans, transmasculines e pessoas não binárias. Meu público é majoritariamente de pessoas LGBTs. Não porque eu queira atender somente pessoas LGBTs, mas porque são essas pessoas que chegam até mim para serem atendidas.

Existe um campo de como é que as pessoas Cis enxergam as pessoas trans e qual o lugar do mercado de trabalho que é colocado para as pessoas trans. Porque eu me formei em psicologia não foi somente para atender pessoas trans ou somente pessoas LGBTs, eu me formei para atender toda e qualquer pessoa, estou capacidade para isso”.
 

A luta por reconhecimento legal e acesso a direitos

Desde 2018, pessoas transgênero maiores de 18 anos podem alterar nome e gênero na certidão de nascimento sem necessidade de cirurgia. No entanto, a opção é limitada a "masculino" ou "feminino", excluindo pessoas não bináries. Somente Bahia e Rio Grande do Sul permitem a inclusão do gênero "não binárie" de forma regulamentada, enquanto em outros estados, a retificação ocorre apenas por decisão judicial.

Outro problema é a falta de padronização nos documentos oficiais, onde podem aparecer termos variados, como "não binárie", "gênero neutro" ou "agênero". Essa falta de uniformidade gera entraves burocráticos e reforça a invisibilização da identidade não binária.

Foto: Reprodução | Ascom IBDFAM

Mesmo tendo essa dificuldade e descaso com a retificação de pessoas não binárias, os dados mostram que no sul do Piauí, na cidade de Picos, se deu a primeira retificação de nome e gênero de pessoa não binárie no Piauí, e isso muito antes de ter sido feita solicitação juntamente com a Defensoria Pública de Teresina para o Tribunal de Justiça. O que mostra que essa demanda por retificação é uma demanda que existe, e existe há bastante tempo.

A linguagem neutra e a validação das identidades

A adoção da linguagem neutra também faz parte dessa luta. O primeiro pronome neutro proposto na língua portuguesa foi "ile/dile", criado em 2014 por Pri Bertucci e Andrea Zanella. Em 2018, surgiu o pronome "elu/delu", amplamente utilizado atualmente. No entanto, a resistência ao uso da linguagem inclusiva é mais um obstáculo enfrentado pela comunidade não binária.

“Faço uso dos pronomes elu/delu, é o que eu mais gosto, é o que eu gostaria que as pessoas usassem comigo mas acabo aceitando o ‘ele’ por que a grande maiorias das pessoas não sabem ou não se prestam o favor de aprender usar o conjunto de linguagem elu, que é a linguagem neutra. E aí eu também entro nessa disputa de linguagem  por entender que é importante também dentro da comunidade trans a gente construir os nossos espaços a partir da linguagem”, destaca  Ayan, perante a dificuldade na utilização dos pronomes neutros, uma vez que grande parte da população não tem disposição para aprendê-los.

Outras duas pessoas não bináries foram entrevistadas pelo Portal AZ e nos contaram um pouco sobre sua vivência, mercado de trabalho, desconfortos e desafios sociais:

Foto: Reprodução | Arquivo Pessoal
Alexandre Fantine, pronomes elu/ele.

Alexandre Fantine ( @hiyurin_  | @Fantiartx),  jovem transmasculine não binárie, também enfrenta dificuldades na aceitação de sua identidade, inclusive dentro da própria comunidade trans.

“Meu nome é Alexandre Fantine, tenho 21 anos e uso os pronomes ele/elu. No momento, estou cursando inglês na UESPI e também vendo comissões de arte e adesivos.

Meus maiores desafios são, principalmente, lidar com pessoas próximas que não me respeitam como uma pessoa trans. Não tenho apoio em casa nem da minha família, então tive que me desapegar muito do conceito de "lar" e costumo passar a maior parte do tempo em outros lugares onde me sinto confortável. 

Também tem os amigos que, apesar de bem-intencionados, ainda erram muito meus pronomes. Como sou uma pessoa não binária alinhada ao masculino que usa apenas ele/elu, não me limito a roupas masculinas. Eu até entendo a confusão, mas, às vezes, isso me faz sentir inválido, e acabo lidando com crises de disforia diversas vezes. Já até repensei minhas escolhas, mas não posso esconder quem sou só para agradar os outros.

Além disso, a comunidade trans, que deveria ser acolhedora, pode ser bem assustadora. Parece que muitas pessoas trans tentam se provar cada vez mais binárias para serem aceitas pela sociedade, e acabam invalidando pessoas não binárias para se validarem diante de pessoas cis—o que eu acho ridículo. Claro, nem todo mundo é assim, mas já presenciei e vivi essa dor. Descobrir que uma pessoa trans falou pelas minhas costas que eu "não sou trans de verdade" só por ser não binário é algo que machuca muito.

No trabalho, a situação também é complicada. Quando as pessoas me veem e sabem que me chamo Alexandre, mesmo que eu esteja vestido de forma mais masculina possível, sempre me tratam de forma diferente. Já fui a diversas entrevistas de emprego em que percebi o tratamento mudar quando descobriram que sou trans. 

Sempre vem aquele papo de "Nossa empresa busca inclusão e diversidade", mas a gente sabe como funciona, né? No fim, nunca contratam, porque acham que é "complicado" demais. Tenho muito menos oportunidades do que uma pessoa cis. E, quando consegui um emprego, muitas pessoas tinham dificuldade de falar comigo ou me incluir porque "não sabiam como me tratar". Quando não tinham essa dificuldade, simplesmente me chamavam pelo pronome que não uso, mesmo eu reforçando. A vivência de uma pessoa não binária é cheia de obstáculos, principalmente por causa da disforia”.

Melze (@mmelzes), artista agênere, muitas vezes faz uso dos pronomes ele/dele e explica que a escolha é pela falta de adptação das outras pessoas:

Foto: Reprodução | Arquivo Pessoal
Melze é da área do audiovisual e das artes plásticas.

“Sou Melze, uma pessoa agênero e utilizo neopronomes ou ausência de pronomes. Na maioria das vezes tenho que usar o pronome 'Ele' para me identificar já que nem todo mundo se adapta mas não me identifico com pronome masculino. A transbinaridade sempre que pode surge com cobranças desnecessárias em cima de nós nb's como a necessidade de performar androginia e urgência de hormonização, além de cobrar que nos portemos de jeitos que não nos sentimos à vontade. Para mim é muito mais confortável explorar minha transgeneridade de inúmeras formas, não limitá-la.

Sou da área do audiovisual e das artes plásticas, a presença das transgeneridades nos meios artísticos vem crescendo bastante e ainda tem muito a crescer, sempre incentivo amigues trans da área pra que continuem praticando e explorando técnicas para seguirmos nessa.”



 

O futuro da não binariedade no Brasil

O reconhecimento das identidades não bináries e a ampliação de seus direitos são processos em construção. Apesar de avanços na luta trans durante o atual governo, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir plenos direitos às pessoas não bináries no Brasil. Como apontam ativistas, o futuro dessa comunidade depende da mobilização e da continuidade da luta por reconhecimento e igualdade.

Confira as matérias relacionadas:

Leia também