A banalidade do mal e o silêncio cúmplice da covardia
Hannah Arendt mostrou que o mal prospera quando o pensamento ético cede à omissão rotineira
A expressão “banalidade do mal” foi cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendt no contexto do julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista responsável pela logística da deportação de milhões de judeus aos campos de extermínio durante o Holocausto. Enviada como repórter ao julgamento em Jerusalém, Arendt surpreendeu o mundo com sua análise: Eichmann não era um monstro sádico nem um psicopata cruel, mas um homem comum, burocrático, medíocre e obediente, que alegava apenas estar “cumprindo ordens”.

Para Arendt, o mal pode se manifestar não apenas em atos brutais cometidos por pessoas excepcionalmente perversas, mas também em ações rotineiras, mecânicas, executadas por indivíduos incapazes de pensar criticamente ou refletir sobre as consequências éticas de seus atos. O perigo, segundo ela, está nessa incapacidade de pensar — não no sentido de inteligência, mas no sentido moral e filosófico do julgamento ético.
- Participe do nosso grupo de WhatsApp
- Participe do nosso grupo de Telegram
- Confira os jogos e classificação dos principais campeonatos
Eichmann representava, portanto, uma forma de mal que não nasce do ódio explícito, mas da alienação, da conformidade cega às normas e à autoridade, da renúncia à responsabilidade individual. Ao fazer isso, Arendt rompeu com a ideia de que apenas pessoas intrinsecamente más seriam capazes de crimes tão atrozes. Ela demonstrou que a estrutura totalitária pode transformar qualquer pessoa em agente do mal, desde que se renuncie à consciência e ao julgamento.
A tese da banalidade do mal é profundamente perturbadora, pois desestabiliza o conforto de pensar o mal como algo distante, excepcional e monstruoso. Em vez disso, aponta que ele pode estar presente no cotidiano, em pequenas ações de omissão, obediência e silêncio.
Mais do que uma descrição de Eichmann, a “banalidade do mal” é um alerta: quando o pensamento crítico se cala e a ética é substituída por convenções, o mal deixa de ser extraordinário — e se torna banal.
Na vida cotidiana, o mal raramente se apresenta em sua forma mais brutal e escancarada. Ele surge, muitas vezes, de maneira sutil, sorrateira, infiltrando-se nos gestos comuns, nas omissões rotineiras, nas escolhas aparentemente inofensivas que, ao se acumularem, colaboram com a manutenção do sofrimento alheio. O mal não exige, necessariamente, ódio ou crueldade ativa; às vezes, basta o silêncio cúmplice, o conformismo confortável, a recusa em pensar.
Tomemos, por exemplo, a relação entre dois amigos. Um deles comete violências morais — ou mesmo físicas — contra sua esposa. O outro, embora ciente dessas ações, permanece inerte. Não por ignorância, mas por covardia. Sua motivação não é o apoio explícito ao crime, mas o desejo de preservar a amizade que tanto preza, ainda que isso implique proteger e acobertar o agressor. Prefere não intervir, não confrontar, não se responsabilizar. Guarda os segredos mais obscuros do outro em nome de uma suposta lealdade.
À luz do pensamento de Hannah Arendt, essa atitude não é neutra. Ao contrário: trata-se de uma expressão nítida da banalidade do mal. A omissão diante do sofrimento, a recusa de julgar e de agir moralmente constitui um terreno fértil para que o mal se perpetue. O amigo que se cala não é apenas um espectador: ele é parte do mecanismo que permite a continuidade da violência. Sua covardia não é inocente — ela presta serviço ao mal, tornando-o administrável, tolerável, quase invisível.
Arendt nos alerta que o mal não depende de monstros, mas de homens comuns que abdicam do uso da consciência. A ausência de pensamento — no sentido mais profundo, como a capacidade de refletir sobre o que estamos fazendo e sobre o mundo que ajudamos a construir — é o que permite que atrocidades se enraízem sob a superfície do cotidiano. Não se trata apenas de fazer o mal, mas de não pensar sobre ele.
Assim, não há inocência no silêncio nem neutralidade na omissão. Quem vê o sofrimento e não age, quem conhece o mal e o tolera, torna-se também seu agente — ainda que de forma indireta, ainda que envolto em justificativas pessoais. A banalidade do mal é isso: o momento em que a ausência de pensamento ético converte o ser humano em engrenagem muda de uma estrutura destrutiva. E é justamente aí que ele se torna mais perigoso.
A covardia presta serviço ao mal.
Fonte: Portal AZ