Por conta da pandemia, mais de 400 trabalhadoras sexuais desaparecem das ruas de Teresina

Presidente da Aprospi aponta descaso de órgãos públicos: "Omissão"

Por Vitória Pilar e Joel Rodrigues,

Toda sexta-feira à noite, há quase dez anos, Célia Gomes tem a missão de percorrer às ruas de Teresina com o mesmo objetivo: prestar assistências em bordéis. Distribuindo comida, preservativos e orientações, a presidente da Associação das Prostitutas do Piauí (Aprospi), revelou que há quase 2600 trabalhadoras sexuais no Estado, das quais 800 ganham a vida na capital. 

No entanto, desde de 2020, primeiro ano da pandemia em território piauiense, cerca de 400 mulheres saíram do mapeamento feito pela Associação. “Eu não ‘tô’ mais achando elas. Sumiram dos pontos”, contou Célia.

Aprospi em ações de entregas de preservativos, alimentos e orientações (Foto: divulgação)

A presidente relatou que precisa de um carro para fazer um novo mapeamento para encontrar essas mulheres. Atualmente, há um transporte disponibilizado pela Fundação Municipal de Teresina (FMS) nas noites de sexta-feira, mas que ao tentar conversar com a gestão para conseguir o carro para fazer esse trabalho, teve o pedido negado. Para Célia, essa não é a primeira frustração que tem com o poder público da capital.

“A gente tem um carro, humilhada, que é obrigado a falar com A mais B para a gente colocar nossos materiais de trabalho e distribuir. Você vai na Fundação, diz que o dinheiro é só pra covid-19, mas o dinheiro pro tratamento da Aids tá lá, das DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) tá lá, todas as doenças o dinheiro tá lá, mas não compram nem o gel lubrificante e ficam dizendo que o Governo Federal que não manda. Tá bom pra tu? É omissão”, desabafou a presidente. 

Célia também revela que há uma descaso por parte do Governo do Estado. Durante todo o ano de 2020, apenas no mês de dezembro, foi recebido por parte da Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para Mulheres, 100 cestas básicas de alimentação. Ela afirmou que a doação não deu nem para o começo. 

Sem possibilidades de manter a distribuição de comidas com frequência, a presidente teme que a maioria tenha virado usuárias de drogas e moradoras em situação de rua em outras áreas da cidade. “Na pandemia, as prostitutas ficaram à deriva. A gente sente que isso também é um preconceito contra a gente. O estigma ainda é muito grande”, disse.

Durante meados do ano passado, a Vigilância Sanitária de Teresina havia solicitado a categoria para realizar um protocolo de segurança para que elas continuassem realizando atendimentos. No entanto, por diversas vezes, a reunião foi sendo adiada e nunca aconteceu.

- “Menina, nunca teve nem isso”, exclama.

Célia teve que se virar. Ligou para várias amigas enfermeiras  e “inventou” as medidas de segurança. “Amizade foi o protocolo. Ninguém solta a mão de ninguém. Pois tá aí. Protocolo foi minha boca e meu celular”. 

A equipe de reportagem procurou à Fundação Municipal de Saúde para saber a respeito disso. Com as eleições de 2020, a gestão mudou e o atual presidente da FMS, Gilberto Albuquerque, relatou não estar ciente de que houve a possibilidade de um protocolo para as prostitutas.  Segundo ele, o órgão “ajuda” a Aprospi disponibilizando camisinhas e o veículo para as ações das associadas.

“O veículo vai estar à disposição. Não posso deixar faltar com elas, não. Nós fornecemos camisinhas também, desde a nova gestão. Nosso apoio é esse, o veículo e o apoio de material com DST”, explicou. 

A presidente demonstra inquietação com o comportamento dos poderes públicos. Ela revelou que, apesar das dificuldades, recebe muitas doações de iniciativas voluntárias. Ainda em 2020, a Aprospi recebeu R$ 10 mil reais do Fundo Brasil. Com o dinheiro, foi comprado cestas básicas, álcool em gel, máscaras e sabonetes líquidos que coubesse em bolsas de colo. 

Cada prostituta beneficiada, recebeu duas máscaras para usar da manhã até meio-dia e mais duas para usar do meio-dia até à noite. Durante as entregas, Célia disse que a orientação era usar máscara durante o atendimento e não beijar na boca, apesar de já ser uma política entre algumas trabalhadoras antes mesmo da pandemia. 

O que diz os poderes?

A reportagem procurou a Coordenadoria de Estado de Políticas para Mulheres (CEPM/PI) para saber quais as medidas destinadas à categoria. A coordenadora, Zenaide Lustosa, ressaltou que apesar de haverem iniciativas que contemplam às prostitutas, o principal papel deveria ser por parte do poder local. 

Sem detalhar e esclarecer sobre as ações, Zenaide citou o programa “Ei Mermã Solidária”, que arrecada produtos de higiene e limpeza para distribuir às mulheres em vulnerabilidade. A Coordenadora diz que há muitos municípios, além de diversas associações e coletivos que são beneficiados. Questionada sobre as políticas públicas para às prostitutas no Piauí, ela informou apenas a doação de cestas básicas, em dezembro de 2020. 

Zenaide não soube precisar a quantidade de alimentos e trabalhadoras que foram contempladas. “A doação existe. Não é muita coisa não, como eu citei. São muitas realidades e trabalhamos com 224 municípios. Não posso atender só Teresina e quando você faz um projeto desse, o que é muito, acaba saindo pouco porque é muita doação. O poder público local teria que agir com mais força, né?”, respondeu. 

Com esse contraponto, a reportagem buscou à Secretaria Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres (SMPM) de Teresina sobre as medidas realizadas pelo município em relação as trabalhadoras sexuais. Karla Berger, atual secretária, explicou que iniciou o comando na pasta em 2021. Com recém quatro meses de gestão, ela contou que pegou uma ‘Casa’ desorganizada, com déficit orçamentário precário. 

Karla Bérger, secretária de Políticas Públicas para as Mulheres (Foto: divulgação)

Segundo Karla, dentro da Secretaria, ainda há débitos de luz, energia, telefone e várias outras contas que não estavam sendo pagas desde o mês de outubro de 2020, o que impossibilitou ações mais profundas durante os primeiros meses de gestão.

Indagada sobre os dados das ações realizadas pela SMPM no primeiro ano da pandemia para as prostitutas realizadas pela pasta na gestão anterior, Karla relatou que ainda não houve ações específicas para a categoria. Com base no relato de uma funcionária efetiva desde 2019, houve apenas rodas de conversas e parcerias em um evento nacional das Associações de Prostitutas, que aconteceu em Teresina. 

A secretária apontou a situação como um atraso para a realidade dessas mulheres e que durante a gestão, juntamente com a primeira-dama, Samara Conceição, vem conversando com a Aprospi para desenvolver políticas públicas mais específicas não apenas para as trabalhadoras sexuais, como também outras realidades femininas. 

No entanto, o trabalho de pesquisa e desenvolvimento ainda está sendo encaminhado. Karla adiantou a respeito de um projeto que será aperfeiçoado e receberá o nome de “Florescer”, no qual visa dar apoio de segurança, educação e saúde às mulheres de Teresina. Afirmou, ainda, que brevemente chamaria Célia para uma nova reunião, na qual pretende que a presidente participe ativamente do plano previsto para as trabalhadoras sexuais. 

“Atualmente, há um terreno que foi desapropriado e a gestão passada não pagou. Para que a gente tenha recursos de Brasília para a construção da Casa da Mulher, precisamos pagar esse terreno, que vale em média de 4 milhões de reais. A gente fica em uma inquietude de querer fazer, mas com muitos impasses para resolver”, descreveu. 

Faculdades de portas abertas e mentes fechadas

Célia diz ter uma lamentação com as faculdades do Piauí. Para ela, muitas instituições se aproveitam da Associação. A presidente afirmou já estar cansada de ter que se doar tanto para pesquisadores e universitário, mas não receber retorno ao fim dos trabalhos.

“Eu até falei que não ia mais falar com universitário. Porque olha, meu telefone toca o dia todo, e é universitário. Eles terminam os trabalhos deles e nunca mais pisam na Aprospi. São pequenas coisas, sabe? A gente não quer dinheiro, mas queria uma contribuição deles. Como aqueles trabalhos deles podem voltar pra gente?”, questionou. 

Ultimamente, Célia vem participando de eventos ministrados pela Universidade de Minas Gerais (UFMG), de forma online. Ela questionou como uma universidade tão longe possibilita espaço para elas, mas as piauienses não. 

Na visão da presidente, as faculdades estão muito fechadas para a categoria. Como um local que pode propiciar tanto conhecimento não chega em públicos tão segmentados? Para ela, portas abertas apenas para alguns.

“A gente tem um sonho da vida que é fazer uma grife. A gente tem uma máquina, mas não consegue fazer uma ponte com esse povo que estuda. Como que fala? Moda, né? A gente quer uma retribuição social. Olha, eu dava muita palestra e palestra eu não faço mais. Fomos em uma faculdade privada e eles não deram nem um copo d'água pra gente, tu acredita? Na Federal e na Estadual ainda posso pensar”, comentou.

Com a pandemia o mundo parou, mas a Aprospi não

Falar da Associação de Prostitutas do Piauí é falar da história de Célia. Com 54 anos, ex-prostituta, mãe de duas mulheres e avó de quatro crianças, a presidente contou que a vida ainda lhe reservou uma menina, que tomou para si como filha do coração.

Célia Gomes, 54 anos, ex-prostituta, presidente da Aprospi, mãe de duas filhas e avó (Foto: divulgação) 

Ela se identifica como uma mulher cheia de sonhos, ideais e posicionamentos precisos e preciosos que adquiriu ao longo da vida. Vive a causa diariamente, da hora que acorda até o final do dia. Participa de reuniões à nível nacional e insere a Aprospi em diversas iniciativas para manter a causa firme. 

Célia relatou que a ideia de uma Associação para as prostitutas era uma iniciativa do Ministério da Saúde, ainda em 2009. Por meio da extinta Associação de Moradores da Zona Sul, Célia fazia entregas de preservativos em bordeis da região. Quando a associação acabou, ela e a companheira Francisca, que hoje já não faz mais parte da Aprospi, levantaram a ideia de uma organização dedicada à categoria. 

Ela lembrou das dificuldades que foi levantar a Aprospi quando não havia dinheiro nem para pagar o registro formal. À época, a FMS disponibilizava vales de ônibus para que elas pudessem fazer o serviço de apoio nos pontos de prostituição. Célia e Francisca viram que apenas as doações não eram suficientes e que elas tinham que se qualificar. Retornaram à Fundação, e juntas, desenvolveram várias palestras sobre educação sexual em bordeis, estimulando uso de preservativos, exames ginecológicos e cuidando das trabalhadoras sexuais. 

Francisca não ficou muito tempo e passou o comando para Célia, que desde 2013, virou o símbolo de liderança da Aprospi. Indagada pela reportagem sobre a disponibilidade de uma entrevista com uma trabalhadora sexual, Célia disparou:

- “Menina, você já viu outra cara no movimento de prostituta sem ser a minha? Prostituta engana a família, diz que trabalha de sacoleira porque a família não aceita. Mas muitas famílias sabem e só pegam o dinheiro. Prostituta não mostra a cara e eu concordo com elas, porque o estigma é muito grande. Eu as encorajo a se mostrarem para que a gente possa ser lembrada, mas é com o tempo. Em fotos das ações, a gente cobre o rosto e esconde as tatuagens”, pontuou.

A vida de Célia é marcada pelo crescimento da Aprospi. No Residencial Esplanada, Zona Sul de Teresina, a Associação ganhou uma sede, com estrutura de escritório, seis computadores e uma impressora completa. 

Com esse equipamento, conseguiu desenvolver projetos, como o Viva Melhor Sabendo, que promove testagem rápida para diagnosticar mulheres com Aids e a promoção de cursos que qualificassem elas. “A gente não quer tirar da prostituição se não quiserem, mas a gente oferece uma segunda opção de renda e apoio”, explica. 

Com duas páginas em redes sociais, pelo Instagram (@aprospiteresina2) e Facebook, a Diretoria, formada por sete membras, publiciza suas ações. Uma delas foi a qualificação de quarenta mulheres durante os meses da pandemia para que elas vendessem materiais de limpeza virtualmente. As aulas ensinavam como produzir essências perfumadas, mas também como elas poderiam divulgar o produto por meio de WhatsApp e Facebook, criando logomarcas e publicidades individuais. 

Cursos promovidos pela Aprospi durante à pandemia em Teresina (Foto: divulgação)

A iniciativa deu certo e as mulheres conseguiram fazer uma cooperativa pelas trabalhadoras sexuais, fornecendo quentinhas em bordeis mais humildes. A primeira ação rendeu 60 quentinhas, e atualmente, já chegam a produzir mais de 150 refeições para serem doadas às sextas-feiras.

Célia gosta de produzir eventos. Por ter uma área de lazer espaçosa em casa, chegou a realizar um almoço para as prostitutas no Natal de 2020. Apesar de ter convidado 70 mulheres, só foram 50. “Meu amor, não é fácil falar com elas”.

No dia 2 de junho é comemorado o Dia Internacional da Prostituta. A presidente faz questão de fazer confraternizações para as mulheres da categoria. Exceto em 2020, que ainda era muito inseguro para fazer reuniões com aglomerações. 

Ficou bastante triste com o que vivenciou na pandemia da covid-19. “Elas estavam à deriva”, desabafou Célia. Se chateou com a FMS quando pediu o carro para voltar às ações e teve que enfrentar uma série de burocracias. Conseguiu, apesar do constrangimento de ter que explicar que o trabalho, por vezes, era o único refúgio de algumas prostitutas.

“A pandemia apertou pra todo mundo, acertou em cheio as trabalhadoras sexuais. Cê vê que os bares fecharam, os bordeis também. Foi ruim pra qualquer trabalhador e a gente se iguala como qualquer trabalhador. Foi difícil. O dinheiro sumiu. O cliente sumiu. Passamos necessidade. Precisamos de ajuda porque não somos diferentes dos outros trabalhadores”, destacou. 

Ela elogiou o trabalho da primeira dama de Teresina, Samara Conceição, que com dez dias de gestão do marido, Dr. Pessoa Leal, propôs um encontro da SMPM com o Sindicato. As fotos da reunião, infelizmente, viraram chacota em um perfil com conteúdo humorístico na capital. A secretária Karla Berger ressaltou que a situação configura uma violência contra as mulheres e realizou um boletim de ocorrência contra o perfil.

- “É um grupo maldito”, exclamou Célia. 

Página de humor de Teresina provoca violência virtual com encontro de Aprospi e SMPM (Foto: reprodução)

Para o futuro, Célia espera que o mundo possa enxergar as prostitutas sem preconceito.  Sua preocupação é levar sua missão à frente, protegendo a memória das trabalhadoras sexuais, sua história de luta e resistência na capital. Em uma palavra, Célia espera apenas respeito. 

Esses dias estão próximos, ela acredita. O trabalho da Aprospi tomou saltos largos, conseguiu alcançar muitas pessoas e diz pretender lutar por cada lugar que as prostitutas mereçam estar, mesmo que em passos lentos. 

A gente tá no Piauí fazendo o que for preciso, mas a gente sabe nosso valor e nosso espaço. Sabia que tem uma moça que tá aqui me ligando e que é jornalista igual você. Adivinha de onde ela é? de Mato Grosso. A gente vai chegar lá”, finalizou. 

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