EDITORIAL: Teresina normalizou matar no trânsito
Capital se tornou um bate-bate sem parque, mas com muitas tragédias
É um estranho pacto de silêncio que se firma, a cada batida fatal, entre os escombros da dignidade e os escombros da lataria. Quando não é o sangue na BR-316, é o sangue na Antonieta Burlamaqui. E o que se vê não é apenas a destruição de vidas, mas a erosão de um pacto civilizatório mínimo: aquele de que regras importam, e que a vida tem valor e que a lei pesa para todos, sem distinção.
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Mas aqui, esse pacto de normas e punições é quebrado — como mais um para-brisa estilhaçado ou os ossos fraturados de inocentes.
Em outubro de 2024, duas mulheres e duas crianças foram atropeladas por uma caminhonete conduzida por um rapaz sem habilitação. O carro pertencia a um influenciador digital — Lokinho — que, ao entregar o veículo a seu namorado, Stanley, também não habilitado, assumiu o risco do desastre. Kassandra e Marly morreram. Maria Suely, uma menina de 11 anos, perdeu a infância, a fala e a mobilidade.
O laudo técnico da PRF foi claro: não houve obstáculo, não houve urgência, não houve prudência. Mas houve liberdade — para o influenciador e seu namorado, que seguem a vida entre postagens, ‘partys’ e patrocínios, mas não presos.
Já na Zona Leste, em dezembro do mesmo ano, foi o estudante de Direito João Henrique quem decidiu que o semáforo era mero enfeite urbano. Embriagado, sob efeito de drogas sintéticas e sem placas no carro, atropelou e matou um jovem casal. Deixou três crianças órfãs. O laudo atestou dolo eventual. Ele sabia o risco e escolheu aceitá-lo. Ainda assim, em abril de 2025, ganhou liberdade com tornozeleira. Afinal, era primário, estudante aplicado, e segundo seus defensores ajudava a avó, apesar do histórico de agressão ao próprio pai — e o magistrado aceitou essa versão, como se a Constituição tivesse parágrafo para piedade seletiva, mas que não se aplicasse nunca as vítimas, pessoas comuns e pobres.
E como esquecer Victória Seabra? Enfermeira, mãe solo, sobrevivente. Foi atingida enquanto se deslocava para o trabalho por um carro em altíssima velocidade, dirigido por Matheus Tajra, um estudante de Medicina que, segundo testemunhas e confissão própria, havia bebido na noite anterior. Fugiu sem prestar socorro. A vítima passou 13 dias na UTI, teve o cérebro aberto e a alma também. Hoje, tenta reaprender a ser ela mesma, enquanto o acusado circula livre, entre provas e estágios.
O que essas tragédias revelam não é apenas a imprudência dos motoristas, mas a complacência sistêmica de um Estado que hesita diante do privilégio, da juventude bem-nascida, dos sobrenomes conhecidos e da influência entre a massa. A legislação, por vezes severa no papel, torna-se flexível no calor dos autos — especialmente quando o réu não tem cara de bandido, mas de aluno da faculdade popular e um carro bem ranqueado na tabela fipe.
E a sociedade piauiense parece ter se acostumado ao escárnio, onde vidas são ceifadas e a resposta judicial é o compasso do tempo burocrático. Há sempre uma audiência por vir, um laudo por anexar, um habeas corpus a conceder. Nesse ínterim, mães choram, órfãos crescem sem respostas, e os réus ajustam suas tornozeleiras ao sapato da próxima festa.
É preciso romper esse ciclo. A justiça não pode ser um privilégio estético, reservado a quem sabe sorrir diante das câmeras ou justificar tragédias com lágrimas bem ensaiadas e um advogado que cobra uma casa de honorários. A lei precisa deixar de ser teoria para tornar-se dissuasão. Não se trata de clamar por vingança, mas de restaurar a ordem moral de uma cidade que precisa urgentemente reaprender a diferença entre o volante e a roleta russa.
Do contrário, restará a todos nós o papel de figurantes neste teatro macabro onde, cada vez mais, a vida vale menos que um perfil azul verificado.
Fonte: Portal AZ