EDITORIAL: Deus, o cabo eleitoral invisível
Wellington Dias torna a família viciada em contracheques. De olho na verba pública
Em 2010, Wellington Dias, então governador do Piauí, anunciou sua renúncia ao cargo para disputar o Senado. Disse, com solenidade, que conversara com Deus. A frase repercutiu, emocionou uns, desconsertou outros, e virou escudo perfeito para um cálculo político com verniz celestial. Quinze anos depois, seu filho, o médico Vinícius, de olho num contracheque, repete o gesto paterno ao ser questionado sobre uma possível candidatura a vice-governador de Rafael Fonteles: “Se for da vontade de Deus”, respondeu, com um meio sorriso ensaiado entre a humildade e a ambição.

A história política do Piauí parece caminhar entre capelas e palanques, como se o céu fosse uma espécie de comitê informal onde se definem coligações, suplências e alianças. Mas a coincidência entre pai e filho vai além do DNA. É retórica herdada, timing ensaiado. O gesto não é fé — é fórmula. Interesse comezinho em busca de se dar bem com o que é público.
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Não há aqui crítica à religiosidade. O Brasil é um país de fé, o Piauí ainda mais. A crença faz parte do tecido da vida, da política, da rua, do lar. Mas quando a fé vira biombo para decisões estratégicas, a devoção se mistura perigosamente com o marketing. "É da vontade de Deus", dizem — quando o que querem dizer é: “Ainda estou vendo as pesquisas. Ainda é cedo para anunciar. Vamos testar a repercussão.”
A fala religiosa, nesse contexto, torna-se o álibi perfeito para não dizer nada e parecer que se disse tudo. Enquanto isso, nas entrelinhas, reuniões seguem, telefonemas acontecem, os velhos caciques afinam os acordos. A consulta divina parece incluir planilhas, sondagens e, talvez, até uma ou outra ligação de Brasília.
Em sua longa trajetória, Wellington Dias aprendeu a dominar esse jogo. Seu filho parece seguir o mesmo roteiro, com disciplina admirável. Mas a política não pode virar novela bíblica de temporada, com messias de ocasião e milagres agendados conforme o calendário eleitoral. Deus, é verdade, pode tudo. Mas não é cabide de indecisos nem marqueteiro de slogans vagos.
O eleitor não espera que seus líderes escutem vozes do além. Espera que escutem sua voz aqui. A do ônibus lotado, da fila do hospital, da escola sem merenda. Porque, ao fim, Deus pode até ter planos — mas quem escolhe, quem vota, quem paga a conta, continua sendo o povo. E o povo, convenhamos, anda farto de profetas em campanha. E abomina os gigolôs de contracheques públicos.
Fonte: Portal AZ