Previdência e Desconstitucionalização

Previdência e Desconstitucionalização

Todas as regras previdenciárias hoje existentes no nosso País, do Regime dos Servidores Públicos e do Regime Geral dos Trabalhadores da iniciativa privada, passarão a ser definidas por leis complementares se a proposta de Reforma da Previdência for aprovada no Congresso Nacional. Significa dizer que haverá, em um futuro não muito distante, absoluta “desconstitucionalização” da Seguridade Social do Brasil, que envolve a Previdência e a Assistência Social, comprometendo a segurança jurídico-constitucional conquistada pelas lutas sociais.

A Seguridade Social ou Segurança Social consiste num conjunto de políticas sociais cujo fim é amparar e assistir o(a) cidadão(ã) e a sua família em situações como a velhice, a doença, o desamparo e o desemprego.

Sob o título da Ordem Social, a Constituição Federal preconiza entre os art. 194 a 204 a base da regulamentação da Seguridade Social no Brasil, como sendo um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade civil organizada destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. De conformidade com art. 194, a Seguridade Social brasileira assenta-se em três bases de natureza pétrea, a saber:

•    Previdência Social: mecanismo público de proteção social e subsistência proporcionados mediante contribuição;

•    Assistência Social: política social de proteção gratuita aos necessitados, às pessoas em situação de pobreza extrema, os vulneráveis;

•    Saúde Pública: espécie da Seguridade Social (por efeito da Constituição) destinada a promover redução de risco de doenças e acesso a serviços básicos de saúde e saneamento.

Proposital ou não, mas pouca atenção se tem dado à profundidade da Reforma da Previdência. Sobretudo na retirada e na fragilidade das garantias sociais conquistadas na Constituição de 1988. Se aprovada a reforma pelo Congresso, todas as nossas conquistas sociais devem ser alteradas no futuro com maiores facilidades, a depender do “bom humor” do governo e do parlamento sempre formados de quatro em quatro anos.

Com a desconstitucionalização da Seguridade Social, como reconhecem os jurisconsultos, o governo fica liberado para aprovar leis complementares para alterar o sistema e a rede social de proteção sem a necessidade de apresentar Emenda Constitucional quando se apresentar, por exemplo, questões que possam modificar os regimes previdenciários e assistenciais do Brasil, como, pontualmente, os critérios para aposentadorias, pensões e benefícios aos vulneráveis.

No momento, técnicos legislativos do Congresso Nacional se debruçam na discussão para saber se com a Reforma da Previdência conquistas de cidadania podem ser alteradas no futuro por Lei Complementar.  Isso porque esta não poderá efetivar, na prática, mudança no texto da Constituição Federal, o que, em tese, não seria possível.

Na avaliação de juristas renomados e de experientes e abalizados técnicos legislativos, a proposta poderá gerar questionamentos e, sobretudo, sofrer enfrentamento jurídico no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a eiva da inconstitucionalidade. Aliás, em uma análise superficial, sem ainda um aprofundamento jurídico-legal, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, constitucionalista de escol, assentou recentemente que a reforma poderá, sim, ser judicializada. Oportunidade em que assim se expressou: “Que vai ser judicializada, eu não tenho nenhuma dúvida”.

Juristas consultados já identificaram várias inconstitucionalidades na Reforma da Previdência, entre as quais se destacam:

1) Violação ao Direito Fundamental à Seguridade Social – Previdência e Assistência, como integrantes dos direitos humanos, inviabilizando o exercício destes;

2) Violação ao Princípio do Não-Retrocesso, em atenção aos princípios constitucionais da dignidade humana e da segurança jurídica, que constituem princípios norteadores do ordenamento jurídico brasileiro;

3) Tratamento Anti-isonômico entre Homens e Mulheres quando estabelece tratamento igual aos desiguais e retira a proteção às mulheres pela Constituição Federal;

4) Alteração das idades para Aposentadoria podendo ser através de Lei Complementar e não por Emenda Constitucional de acordo com a expectativa de vida da população;

5) Redução de Benefícios Sociais (aposentadorias, pensões e assistência social);

6) Violação ao Princípio da Solidariedade, aquele que norteia o regime previdenciário do Brasil, com o sacrifício de direitos de alguns em prol de outros;

7) Desvinculação e Diminuição (metade) da Pensão por Morte do Salário Mínimo, atingindo majoritariamente a população de baixa renda;

8) Reduzir ou Retirar a Proteção ao Trabalhador Rural, diminuindo ou eliminando o caráter assistencial e protetivo que a Constituição Federal confere aos excluídos da sociedade e reconhecidos em estado de vulnerabilidade. 

De passagem, sob a ótica de operadores do Direito e de entidades da magistratura, a Reforma da Previdência atenta contra direitos conquistados pelas mulheres, castigando ainda mais trabalhadores braçais, rurais e de baixa renda, agredindo duramente os idosos e deficientes, ignorando a realidade do trabalho informal e violando fortemente convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como, exemplificativamente, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, aprovada em Washington, EUA, em junho de 2015.

É importante frisar e ressaltar que a proposta remete às leis complementares de iniciativa do Executivo para definir regras de cálculo e o reajuste monetário dos valores dos benefícios, a forma de elevação das idades mínimas para requerer aposentadoria em função do aumento da sobrevida da população, a atualização dos salários de contribuição, os limites mínimo e máximo do salário de contribuição, os requisitos de elegibilidade para cada benefício, as regras para acumulação de benefícios, as condições para as aposentadorias especiais, entre outros temas que afetam duramente a sociedade brasileira, mormente a desprotegida socialmente.

A proposta, enfim, retira da Constituição até mesmo a previsão de que os benefícios previdenciários manterão os seus valores reais. A forma de correção dos benefícios será definida pelas leis complementares, que versarão também sobre os planos de custeio do Regime Próprio de Previdência do Servidor (RPPS) e do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), com as alíquotas progressivas que serão utilizadas para o cálculo das contribuições previdenciárias ordinária e extraordinária dos servidores, esta última destinada ao equacionamento do déficit atuarial dos regimes próprios.

São graves as mudanças constitucionais que tendem a operar um desequilíbrio social com profundas consequências. Questões, por exemplo, que podem demorar mais tempo para que as pessoas possam se aposentar. E, acima de tudo, inviabilizar direitos para que muitos não consigam usufruir desse benefício na doença, na invalidez e na velhice. Muitos por merecer podem perecer!

Humanamente, é inquietante e assustador! Dado que muitos estarão desprotegidos das atuais e vigentes regras constitucionais, que hoje são calcadas na dignidade humana e nos valores solidários, que trazem em si o mais sublime princípio de alcance social no Brasil: a cidadania, preceituada no art. 1º, da Constituição Federal, em ordem decrescente, como o segundo princípio fundamental do Estado Democrático de Direito após a soberania como cláusula pétrea, de imutabilidade.
 

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