Ouvir a Voz das Ruas
Ouvir a Voz das Ruas
Imbróglios envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm gerado debates e embates jurídicos nacionais conflitantes e capazes de apresentar, no futuro, mudanças no ambiente jurisdicional brasileiro. Especialmente sobre as questões que confrontam jurisdição e jurisdicionados com o que se convencionou chamar de “voz das ruas”.
Ana Cláudia Pinho, promotora de Justiça, professora de Direito Penal na Universidade Federal do Pará (UFPA), doutora em Direito e coordenadora do grupo de pesquisa "Garantismo em Movimento", entende que, “como dever de ofício, juízes devem ouvir a Constituição, e não a ‘voz das ruas’”.
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Em defesa da tese, expõe indagações: “Deve, mesmo, o juiz ouvir a voz das ruas? Estaria legitimado democraticamente a corresponder aos anseios da sociedade? Quem seria A voz das ruas? Interessante notar (palavras não estão aí por acaso) que se fala em voz das ruas. Em UMA voz. Em A voz! Por que não em vozes? Teríamos uma voz uníssona? Um único brado, neste país tão pleno de diversidade e regulado constitucionalmente pela pluralidade? E, se há uma voz apenas, a partir de onde a ouviríamos? Seria essa voz a que vocifera palavras de ordem nas manifestações mostradas pela mídia? Ou seria a voz das panelas? Poderia ser a voz persistente dos movimentos sociais? Ou, quem sabe, a voz dos representantes do povo? E a voz dos que não tem voz? Onde fica?”.
A doutora em Direito se reporta, especificamente, às afirmações do ministro Luis Roberto Barroso, do STF, para o qual “se o Supremo não corresponder aos sentimentos da sociedade, vai acabar por perder a sua legitimidade” (fazendo alusão ao princípio da presunção de inocência versus prisão em segunda instância), e do juiz federal Marcelo Bretas, que publicou no seu twitter que o Poder Judiciário deve, sim, ouvir a “voz das ruas”.
Discordando, Ana Cláudia diz que “ouvir o texto da Constituição significa, pois, implicar-se com ele. Esse texto tem muito a dizer! Tem a dizer sobre seu momento histórico (redemocratização do país, depois de 20 anos de uma ditadura militar). Tem a dizer sobre suas características jurídico-políticas (o projeto de implementação de um Estado Democrático de Direito). Tem a dizer sobre o pacto com a dignidade humana, as liberdades e os direitos fundamentais. Tem a dizer, por fim, sobre suas expectativas (como a de construir uma sociedade livre, justa e solidária — artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal)”.
Diz mais: “Quem ouve a Constituição sabe que há um sério risco em ouvir a maioria, a voz das ruas, ou o que se queira dizer com o termo sociedade. É possível, quem sabe um dia, que a voz das ruas harmonize com a voz do texto constitucional. Mas, o momento atual não é de harmonia. A voz das ruas (que parece já ter virado um sujeito, com vida própria) está, inclusive, querendo colocar a Suprema Corte do país contra a parede! Intimidá-la!...”.
A “voz das ruas” defendida por uma parcela significante de membros do nosso Judiciário implica, necessariamente, na observância da “Teoria da Dinâmica do Direito” - este como ciência não estática - para onde caminha a sociedade na busca de um direito que resguarde segurança jurídica, eficiência e mais confiança. Assim, se a sociedade entra em um processo de mutação, em rápida e irreversível dinâmica de mudanças, nada mais coerente e necessário que o Judiciário caminhe nessa direção, perceba isso e comece a adotar um direito também pela “voz das ruas”, que encontra no persistente clamor social seu “eco” mais subsistente.
No Brasil, os registros jurídico-doutrinários nos dizem que “O Direito Achado na Rua” partiu de uma concepção teórica desenvolvida pelo jurista Roberto Lyra Filho, já falecido, autor de vasta obra jurídica, com destaque para a “Teoria Geral do Direito” e a “Criminologia Dialética”, quando se convenceu de que o Direito derivado da ação dos movimentos sociais com perspectiva para uma “legítima organização social da liberdade".
No campo criminal, digo eu, a atual Constituição Federal prescreve que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, quando, claro, esgotados todos os recursos. A sociedade, por sua vez, entende o contrário. De que o criminoso cumpra pena na prisão tão logo seja julgado em segunda instância. Assim, o STF, hoje, tem uma “espada de Dâmocles” sobre sua cabeça, com o “voz das ruas” e o clamor popular esperneando por mudanças significativas no ato de julgar, sobretudo pela “erosão” moral de credibilidade porque passa nossa maior Corte de Justiça.
A corrente que defende o “Ouvir a Voz das Ruas” parte do princípio de que o Direito é entendido como uma liberdade que se constrói dentro de uma Justiça histórica e, por conseguinte, no universo da convivência social dos indivíduos, coletivamente, ou seja, dentro de um “processo e modelo de liberdade conscientizada”. Em suma, é o Direito que o povo quer e não somente o Direito legislado que deva ser.
Ante a polêmica, de um lado aqueles que defendem um direito legalista, elitista, engessado e controlado por uma minoria sócio-jurídica privilegiada. De outro, um novo direito que busca uma prática libertária e que emane do contexto social, concebido pela grande maioria do povo como o “verdadeiro direito”. Aquele oriundo de uma contextura evoluída, uma vez que há um “esgotamento” do atual modelo jurídico nacional.
Perceptivelmente, o povo deseja encontrar na Justiça o seu último bastão de esperanças. E quer ela mais ágil e fortalecida. Exige, por fim, mudança nas leis, modernização e alteração de hábitos seculares que persistem quase que inalterados até os dias atuais.
Para João Baptista Herkenhoff, Mestre em Direito pela PUC/Rio, com Pós-doutoramentos na Universidade de Wisconsin, EUA, e na Universidade de Rouen, na França, autor de 39 livros e Membro da Associação de Juristas pela Integração da América Latina, “é preciso que se compreenda que a Justiça é uma obra coletiva. Todos devem sentir-se servidores, operários, sem vaidades tolas, sem submissões descabidas. (...) O povo deve sentir-se agente da Justiça, participante, ator. A Justiça pertence ao povo, existe para o povo, esse sentimento de Justiça como direito do povo é uma exigência de cidadania. A Justiça deve ser menos formal, mais direta e compreensível, deve abdicar de códigos indevassáveis, sessões secretas e outros estratagemas que pretendem esconder o que deve ser sempre feito às claras. A Justiça deve ser sensível, capaz de ouvir as dores dos jurisdicionados. A palavra tem o dom de libertar”.
A questão, sem dúvida, é muito complexa e não é de fácil desate. Exige tempo e profunda reflexão de todos os atores envolvidos – magistrados e jurisdicionados.
Em que pese a esperança popular, para o juiz de Direito Marcelo Semer, Mestre em Direito Penal pela USP e também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, usar o álibi da “voz das ruas” pode ser um componente perigoso para quem tem o compromisso de zelar pela Constituição (o Supremo, por exemplo). Segundo ainda o magistrado, há um problema de difícil resposta, que é o de saber, efetivamente, o que as ruas estão dizendo.
O juiz federal do Rio de Janeiro, Rafael Rihan Pinheiro Amorim, faz uma indagação: Como controlar a correta aplicação da “voz das ruas”? E responde: “O juiz não pode e nem deve ser uma autoridade indiferente aos efeitos práticos de sua decisão. O cotejo das provas com a lei não é feito em abstrato. Contudo, entre a aplicação das garantias processuais do acusado e a suposta opinião pública repleta de vieses, deve o juiz seguir a legislação, o acúmulo dogmático produzido sobre determinada temática e ter a humildade de reconhecer que suas decisões podem ser reformadas por instâncias superiores”.
De forma contundente, pontua: “Motivar uma decisão com base em opinião pública, além de inadequado, arrogante e arbitrário, é uma forma velada de o decisor constranger seus revisores, aumentando o custo de oportunidade das Cortes superiores na aplicação do direito. Afinal, qualquer revisão do entendimento conforme as pressões populares joga a Corte revisora em desgraça. (...) Logo, a “voz das ruas” é um conhecimento vulgar. Um membro do Poder Judiciário pretender amparar sua atuação na “voz das ruas” tem o mesmo significado que um juiz fundamentar uma sentença com base na astrologia, na alquimia ou na quiromancia”.
E conclui: “Ora, o Judiciário, que deve ser equidistante de paixões, não pode ser refém delas. Quando a “voz das ruas” é invocada pelo STF, a situação fica ainda pior. Vira uma forma de a cúpula da Justiça usurpar poder que não possui. Catalisar aspirações sociais é função da política e não da magistratura”. Mas, faz uma ressalva: “Por essas razões, o Poder Judiciário jamais poderá justificar sua atuação com base na “voz das ruas”. Isso não significa fechar os olhos para o ambiente social”.
Concretamente, os que almejam ouvir a “voz das ruas” influenciando nas decisões jurisdicionais pretendem romper paradigmas e colocar a Justiça a serviço do povo, da sociedade, acima de tudo. Em verdade, sem rodeios, apontam para uma Justiça que o povo pensa e quer, mas que atine para um Direito que seja o mais justo e o mais eficiente possível.
Eis, portanto, a questão posta à mesa: “Ouvir a Voz das Ruas”! Mas, qual será a voz? E se essa voz pedir uma justiça por linchamento, apedrejamento, forca, execução no paredão,...? Como resposta, uma reflexão proficiente e bem oportuna do juiz federal citado: “Em uma sociedade complexa e pluralista, não é fácil descobrir a genuína opinião pública sobre um assunto palpitante. Isso porque o universo populacional carece de atributos seguros para promover uma adequada análise de conjuntura”.
“Análise de conjuntura é um tipo de investigação interdisciplinar difícil. Parece que é algo parecido com tocar violão. Não é complicado tocar mal. Aprende-se fácil e, até rapidamente, alguns acordes. Mas, dizem os musicistas que é um dos instrumentos mais complicados de tocar bem. (...) É preciso saber, também, que identificar tendências, determinações, forças de pressão de primeiro, segundo e terceiros graus encorajam a construção de prognósticos. Mas, é necessário ser prudente. Há limites do que se pode prever, e são muitos..." (Valerio Arcary, professor titular do IFSP, Doutor em história pela USP e autor de "O martelo da história", entre outros livros).