A “esclepicência” e o juiz
A “esclepicência” e o juiz
Ainda que não tenha um significado oficial na língua portuguesa, coube à criatividade e ao vocabulário popular a definição de “esclepicência”, que para o cotidiano implica “essência de algo bom”; para a excentricidade, “gingado”, “gracejo”; para o amor e o sexo, “chamego”;... Um “homem esclepicente” de boas maneiras e de boa palestra tem algo essencial para os outros. Um “homem esclepicente” que tem gingado e gosta de fazer gracejo espalha devassidão.
No primeiro caso, aplicada a regra à magistratura, um “juiz esclepicente” não pode ser parcial para ter essência de algo, afagando com boas maneiras uma parte em prejuízo da outra; não deve falar fora do processo para outrem em detrimento dos interesses da outra parte; não pode fazer juízo de valor para orientar e condenar uma parte. Pela segunda regra, “juiz esclepicente” não pode fazer gingado, gracejo e aceno para uma parte em prejuízo da outra.
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Em ambos os casos, a lei não permite que o juiz tenha “esclepicência”, seja para sorrir ou não para uma das partes. Quando muito, o juiz deve ser educado, conveniente, comedido,... Mas, sem lado!
O jurista Leonardo Issar Yarochewsky, criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas, diz que “mais que um ser humano, o bom juiz deve ser humano”. E relembra o pensamento do jurista italiano Francesco Carnelutti, na obra “As misérias do Processo Penal”, segundo o qual “para ser juiz um homem deveria ser mais que um homem. Nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar outro homem, aceitaria ser juiz”.
Julgar é sério e grave! Gravidade como expressão sinônima de seriedade. O juiz honrado não pode ser “juiz esclepicente” no sentido mais vulgar da criatividade popular, do vocabulário gracejador.
“Não resta dúvida que julgar o semelhante está entre as tarefas mais difíceis, árduas e complexas conferidas a um ser humano, principalmente, se exercida com ética, denodo, responsabilidade, respeito às partes, ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa e, sobretudo, com comprometimento social e com os inalienáveis direitos e valores fundamentais. Se julgar o seu semelhante não é tarefa fácil, quando se trata do juiz criminal a tarefa se torna hercúlea. Como já sentenciou Roberto Lyra (Direito Penal Normativo), “o juiz criminal apaga ou acende a lâmpada do destino, atribui a graça ou a desgraça”.
Na sua obra “Sistema acusatório: a conformidade constitucional das Leis processuais penais”, Geraldo Prado leciona que a posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o processo, “sustenta-se na ideia reitora do princípio do juiz natural – garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõe durante o processo”.
Ainda que tenha suas posições e conotações políticas, religiosas e ideológicas, deve o juiz ser imparcial tanto objetiva como subjetivamente. Lição de Direito nos dita que o juiz deve compreender que o Estado é a parte na relação processual, de que o Estado é o detentor do “jus puniendi” e, portanto, se alguém deve ser “protegido” este alguém é a sociedade. O magistrado que não zela e porta-se como verdadeiro guerreiro na defesa dos direitos e garantias fundamentais de outrem, na defesa da Constituição, não pode julgar; deve ser julgado.
Como se explica o convívio com ladrões da coisa pública, da “cleptocracia” instalada e disseminada nos quatro níveis de poder (federal, estadual, distrital e municipal), com juiz ou juízes optando por uma das partes? Como explicar que possa escolher seus “réus de estimação”? Como justificar?
Depois de várias denúncias contra magistrados brasileiros, criou-se no seio das investigações como forma disfarçada de defesa a figura do “juiz neutro”. Os críticos dizem que isso não existe no Brasil. Neutro seria o juiz que não pende por nenhuma das partes. Mas, aqui terminam pendendo. Que seus sentimentos, suas formações sócio-culturais, formas de vida e todos os fatores externos não devem influenciar em quaisquer decisões. Mas, terminam influenciando. Como elemento da sociedade, o juiz tem suas emoções e seus valores. E que jamais podem contaminar sentimentos comportamentais. Mas, terminando contaminando o processo seja cível ou criminal.
Juiz não pode ter símbolo de “herói”. É regra. É para ser, acima de tudo, uma garantia constitucional para todos, indistintamente. Título de “herói” para juiz é utópico! Não existe em qualquer lugar do mundo! Todos que assumiram a carapuça claudicaram, mais cedo ou mais tarde. Juiz não pode ser bom. Deve ser justo. Não é vencido e nem vencedor.