Trânsito – bom senso, lei e descaso

Trânsito – bom senso, lei e descaso

Recentemente, um juiz do Rio Grande Norte, mais precisamente da Comarca do Município de Francisco Dantas, decidiu que “o Poder Judiciário não pode obrigar o ente público municipal a promover a criação de estruturas administrativas destinadas a implementar a municipalização do trânsito com sua consequente integração ao Sistema Nacional de Trânsito (Processo nº 0102526-87.2017.8.20.0108).

Através de uma Ação Civil Pública, o Ministério Público do Rio Grande do Norte buscou a cominação do respectivo município para obrigá-lo a editar e efetivar atos legais e administrativos no âmbito de engenharia, fiscalização e educação de trânsito, além de levantamento, análise e controle de dados estatísticos correspondentes.

Surpreendentemente, ao negar a ação, o magistrado disse na sentença que o ordenamento jurídico - mais especificamente o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), art. 24, § 2º - não ampara a pretensão do Ministério Público. “A adesão ao Sistema Nacional de Trânsito – SNT para os Municípios não configura, portanto, uma obrigação legal, mas uma faculdade que se insere dentro de sua autonomia político-administrativa”, assinalou.

A surpresa reside no fato de que o juiz entendeu tratar-se de uma “faculdade” e não de uma obrigação do município integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito.

A decisão, realmente, é equivocada. Um erro! Na verdade, trata-se de uma obrigação legal a integração municipal ao respectivo Sistema Nacional de Trânsito.

Reza o § 2º, do art. 24, do Código de Trânsito Brasileiro:

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
(...)
§ 2º. Para exercer as competências estabelecidas neste artigo, os Municípios deverão integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito, conforme previsto no art. 333 deste Código (grifei).

Observe a locução “...deverão...” definida pela legislação. Que pela hermenêutica jurídica impõe uma obrigatoriedade e não uma faculdade, como inadvertidamente entendeu o magistrado. Se fosse uma faculdade a lei prescreveria “...poderão...”. E isso não poderia ocorrer em hipótese alguma. Porque a legalização de trânsito é um direito da sociedade e, por consequência, um dever do Estado, incluindo-se a União, o Estado-Membro, o Município e o Distrito Federal, como entes federativos. É regra constitucional imperativa e não facultativa.

A decisão do juiz no caso concreto apenas tem um sentido viável, sensível, admissível e aceitável: uma cidade tão pequena como Francisco Dantas não comporta um “nível de sofisticação administrativa”. O que se percebeu é que o magistrado decidiu com base na analogia e nos princípios gerais do direito, atendendo ao bom senso em virtude das características da cidade; de uma pobreza franciscana.

Como sabemos, o CTB introduziu o conceito de municipalização do trânsito pela integração da entidade municipal ao Sistema Nacional. Assim, os municípios adquiriram a responsabilidade sobre o trânsito das cidades. As prefeituras, enfim, tornaram-se responsáveis por lei pelo planejamento e projeto, pela operação, fiscalização e educação de trânsito, tanto urbano como rural.

A demanda, decorrente de um imperativo constitucional, é uma obrigação do município e não uma faculdade, como, repita-se, equivocou-se o juiz. É dele, município, a responsabilidade e o dever de atender as necessidades da coletividade decorrente de um imperativo constitucional.

O Direito de Trânsito, como tantos outros ramos das Ciências Jurídicas, encontra seus fundamentos e princípios no Direito Constitucional e, pelo direito comparado, no Direito Internacional Público, relacionando-se com as mais diversas áreas do Direito Administrativo, do Direito Penal e do Direito Civil. A livre circulação no tráfego constitui um direito expressamente previsto na Constituição Federal. Não é uma faculdade! O “fenômeno trânsito” repercute de forma decisiva sobre a vida e sobre os direitos fundamentais dos cidadãos.

A Constituição de 1988 modificou profundamente a posição do município na Federação. Porque passou a considerá-lo como componente da estrutura administrativa. Daí nascimento da competência para o trânsito municipal.

Na cidade de Luzilândia-PI, minha terra natal, por muito tempo o Ministério Público Estadual tenta medidas para combater a desorganização do trânsito local. Inclusive para obrigar o município a uma ordenação e a uma fiscalização mais firme no sentido de prevenir acidentes. Nosso trânsito por lá é um verdadeiro “escândalo”! Apesar dos esforços, o Ministério Público não tem obtido sucesso. Uma polêmica que se arrasta ao longo do tempo por absoluta desinformação do nosso corpo social.

Por que isso ocorre? Porque em Luzilândia há uma resistência de uma parcela da sociedade desavisada e desorientada. Pior: com incentivo ao descumprimento da lei, à desobediência civil cúmplice, aberta e permanentemente.

Argumentando, a situação do Município de Francisco Dantas não pode servir de parâmetro e/ou comparação para o que ocorre no Município de Luzilândia. Enquanto aquele município potiguar tem pouco mais de 2.800 habitantes, ocupando uma área de 182 km², Luzilândia tem uma população de aproximadamente 24 mil pessoas, com área geográfica de 735,93 km², quase quatro vezes maior.

Vê-se, portanto, que são situações diametralmente opostas. Implica dizer que o critério adotado para Francisco Dantas pelo bom senso da decisão judicial não pode ser aplicado para Luzilândia. Um município é paupérrimo, pequeno, sem infraestrutura, como constatou o juiz na respeitável sentença. Ao contrário, o nosso, não!

Se em Francisco Dantas a decisão judicial ensejou-se no realce do bom senso e levou em consideração a infraestrutura potiguar rudimentar, precária, em Luzilândia – tida e havida como imponente pelos “arautos” - qualquer decisão jurisdicional deverá levar em conta não só o bom senso como também o império da lei de trânsito, com suas pertinentes adaptações, doa a quem doer.

Diferentemente de Francisco Dantas, o Município de Luzilândia não poderá alegar escassez de recursos públicos e nem ausência de infraestrutura. Inclusive, já conta com uma Guarda Municipal e com agentes de trânsito devidamente treinados. Um começo importante e fundamental para que a lei seja cumprida em sua eloquência, ainda que sem os contornos e apetrechos de uma cidade de grande porte.

Em Esperantina e Piracuruca, para citar apenas dois exemplos de cidades do mesmo porte de Luzilândia, a implantação de sinalização vertical e horizontal, contramão e estacionamentos proibidos já foram implantados e sem maiores constrangimentos para a população – citando apenas estes planejamentos.

Com a construção de uma ponte que liga o Piauí ao Maranhão pelo norte e sudeste dos estados, respectivamente, Luzilândia se transformou em corredor interestadual de trânsito, exigindo uma atenção acurada e redobrada das autoridades na eficiência do tráfego de pessoas e veículos.

Assim, o que não pode continuar é imperando o descaso e a omissão. Que, sem dúvida, estimula a desordem, a desorganização, o “salve-se quem puder” no trânsito, com consequências graves e danosas para a coletividade na saúde e no luto por incontáveis infortúnios. O Ministério Público em Luzilândia tem razão quando exige o cumprimento da lei, que tem como único objetivo o bem comum. Nada mais que isso!

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