Constituição, Atributo e Princípio
Constituição, Atributo e Princípio
Antes de enfrentar o tema, necessário uma incursão sobre o significado das locuções “absoluto” e “relativo” no arcabouço do Direito. Então, direitos fundamentais absolutos são os supra-estatais, cuja validade independe de positivação interna constitucional, enquanto os relativos são aqueles que somente têm validade se previstos no Direito Positivo Interno, ou seja, no Direito Legislado.
Recentemente, o procurador da República Deltan Dallagnol causou rebuliço no meio jurídico ao dizer em uma palestra universitária que “nenhum princípio da Constituição é absoluto”, reportando-se sobre a polêmica da “presunção de inocência” que, segundo o procurador, deve ser compatibilizada com outros direitos e valores constitucionais e com a eficiência da Justiça. Foi acusado pela imprensa de ter desafiado a Constituição Federal. Não desafiou!
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Segundo o filósofo Immanuel Kant, autor do idealismo transcendental, o homem é dotado de especial atributo, que denominamos dignidade, por ele ser fim em si mesmo, e não um meio para usos arbitrários dos outros. Sendo fim em si mesmo, possui valor absoluto, não podendo ser utilizado como instrumento (meio) para o Estado ou outro particular, por isso detêm dignidade.
Assim, se nosso Texto Constitucional Maior trás a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, conclui-se que o Estado Democrático de Direito existe em função e garantia não só dos cidadãos ou nacionais, mas de toda e qualquer pessoa.
“A experiência histórica e os parâmetros delineados por Kant em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes indicam o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana, que pode ser sistematizado em quatro pontos básicos: 1) a universalidade do homem como sujeito de direito e a afirmação de direitos subjetivos; 2) a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico fundamental e absoluto; 3) a dignidade da pessoa humana como um princípio em constante reconstrução; e 4) a dignidade da pessoa humana como direito à afirmação de um projeto individual.” (in Alexandre Vitorino Silva, em “Estudos de Direitos Público: direitos fundamentais e estado democrático de direito”, p. 212).
Seria, então, a dignidade humana um princípio constitucional absoluto? Não! O procurador tem razão.
Quando dissertava sobre o instituto da “presunção de inocência” no polêmico debate sobre a prisão por condenação em segunda instância, Dallagnol adentrou sobre a polêmica discussão de que o princípio da dignidade humana não é absoluto, isso porque a dignidade pessoal pode ceder em face de valores sociais mais relevantes quando em conflito com a dignidade dos demais membros da coletividade.
Implica dizer que quando há interesse público relevante maior, abrangente coletivamente, a dignidade da pessoa poderá ser relativizada, abrindo caminho para o intangível bem comum da sociedade.
Como núcleo do ordenamento jurídico nacional, como valor supremo construído constitucionalmente, em verdade a dignidade da pessoa humana não é propriamente um princípio, mas um atributo que, segundo o professor Marcelo Novelino Camargo, a Constituição reconhece, protege e promove, tendo por destinatário não só o homem no gozo de sua existência, mas o nascituro e os falecidos.
Infelizmente, Dallagnol não foi claro o suficiente para convencer que como fundamento da República (CF, art. 1º, inciso III) a dignidade humana é um atributo e não um direito. Porém, a ninguém é impedido de enxergar nesse atributo a existência de um princípio constitucional implícito, com força jurídico-normativa. Desta forma, teríamos não o “atributo valor humano” e sim um “direito constitucional subjetivo”, dado ao valor normativo dos princípios, como pontua a doutrina especializada capitaneada por Oton de Azevedo Lopes e outros.
Quando o Estado aplica uma pena de prisão a uma pessoa, o princípio da dignidade humana é relativizado frente à proteção do mesmo princípio relativamente às outras pessoas, que também integram a coletividade, máxime as vítimas da ilicitude.
Vamos entender o quebra-cabeça: quando a dignidade da pessoa humana é vista como um atributo constitucional, como fonte de nosso ordenamento jurídico, como núcleo intangível da dignidade da pessoa, ela tem caráter absoluto. Quando essa mesma dignidade é vista como princípio constitucional implícito, como direito constitucional subjetivo, reveste-se de caráter relativo.
Na Constituição brasileira - diz Oton de Azevedo -, há pelos menos três direitos fundamentais que não se sujeitam a nenhuma restrição por serem uma expressão da dignidade da pessoa humana: vedação à tortura; tratamento cruel ou degradante; e escravidão. A dignidade da pessoa humana infirma, neste aspecto, as afirmações, comuns no direito, inclusive no Supremo Tribunal Federal, de que não existem direitos absolutos, nem direitos sem possibilidade de restrição.
Na chamada “fórmula do objeto” produzida por Kant, a dignidade seria violada toda vez que o ser humano fosse tratado como um meio e não como um fim em si mesmo, sendo vedada, pelo núcleo da dignidade, a prática de qualquer conduta que importe em coisificação ou instrumentalização do homem com o nítido ânimo de desprezá-lo em sua condição humana.
Para concluir, a dignidade humana - como um dos fundamentos da República - é um atributo absoluto, inegavelmente! Como princípio, flexibilizado, relativizado para compatibilizar os vários direitos fundamentais e a dignidade dos outros seres humanos componentes da sociedade, resguardando-se um mínimo existencial para a garantia de uma vida digna a cada um, indistintamente. Em suma, o princípio é mutável; o atributo, não.