Presunção de Inocência e Prisão
Presunção de Inocência e Prisão
É muito interessante o debate junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e na classe jurídica nacional sobre a garantia constitucional da presunção de inocência e, por conseguinte, a prisão do condenado criminalmente em Segunda Instância.
Para compreender a discussão, passemos, pois, às definições legais sobre as cláusulas pétreas da vigente Constituição Federal, “in verbis”:
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Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
São a forma federativa, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais as tão decantadas cláusulas pétreas do nosso Direito Constitucional Positivado.
Alguém haverá de perguntar: “Onde está a presunção de inocência?” Justamente nas “garantias individuais”, que vem definida no art. 5°, da Constituição com a seguinte redação:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Na polêmica junto ao STF, vem o Código do Processo Penal brasileiro com o regramento abaixo:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Observe que há uma perfeita sintonia entre a Constituição Federal e o Código do Processo Penal quanto à prisão decorrente de sentença condenatória transitada em julgado.
Observe também que a Lei Processual Penal trás duas situações distintas para que ocorra a prisão:
1) por sentença condenatória com trânsito em julgado e;
2) no curso da investigação ou do processo criminal, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
Vê-se, clara e induvidosamente, que não há qualquer inconstitucionalidade e/ou conflito entre a Constituição e a Lei Processual Penal. No entanto, alguns defendem que o réu, após a condenação em segunda instância, já deve iniciar o cumprimento da pena. Outros, contudo, sustentam que tal interpretação violaria a presunção de inocência.
“O problema, todavia, parece residir na expressão “ninguém será considerado culpado”, presente no referido artigo constitucional. Não ser considerado culpado é, em outras palavras, ser considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Afinal, prender um réu que ainda pode recorrer seria tratá-lo como inocente ou como culpado? Busquemos um exemplo cotidiano. Imaginem um estudante que, durante o semestre inteiro, teve notas ruins, mas ainda pode fazer uma “prova final”. As chances de ele reverter a situação são muito baixas, mas existem. E se o colégio decidisse, desde já, faltando um mês para o ano letivo acabar, colocá-lo na série anterior, porque ele está praticamente reprovado? Isso pareceria correto? Pois bem, o STF é muito mais do que um colégio. Os réus não são meros estudantes. A metáfora, no entanto, é um singelo convite à reflexão” (Raquel Lima Scalcon, Doutora em Direito Penal pela UFRGS, com período de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS).
A garantia ou, como queira, o princípio da presunção de inocência tem como precedentes históricos o que vem definido no art. 9º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1.789. Sua inspiração vem de iluministas intelectuais como Voltaire e Rousseau. Posteriormente, foi reafirmada no art. 26, da Declaração Americana de Direitos e Deveres, de 22 de maio de 1948, e, posteriormente, no art. 11, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Assembleia das Nações Unidas, em 10 de dezembro do ano de 1948.
A atual discussão junto ao STF se prende ou não quando houver condenação em segunda instância, levando o leigo à percepção de que se não houver a prisão todos vão recorrer e os criminosos continuarão soltos. Não é bem assim.
Havendo necessidade justificada e fundamentada da decretação da prisão, por se tratar de réu perigoso ou que possa tumultuar ou prejudicar a instrução processual até mesmo na fase recursal, o magistrado pode, sim, decretar a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Neste caso, embora milite em favor do condenado a presunção da inocência poderá ele ser preso porquanto sua periculosidade se constitui em limitador para a liberdade de ir e vir.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, é de uma clareza meridiana: “Art. 14.2 Qualquer pessoa acusada de uma infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.
O Brasil vive um momento conturbado de crise de violência. Levando a compreensões equivocadas sobre a discussão da prisão por condenação em segunda instância em confronto com a garantia constitucional da presunção da inocência.
Historicamente, Leomir Batisti exprime que em termos penais o que se viu em alguns momentos foi a manipulação do Direito Penal como um instrumento de perseguição, com prisões fundamentadas em boatos, condenações infundadas e manipuladas. Verificado isso, há, sim, ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana (in “Presunção de Inocência. Apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e constituições do Brasil e Portugal” – Curitiba - Juruá, 2009).
O Princípio da Presunção de Inocência deve ser a regra e efetivamente preponderar, mas merece ser mitigado quando há evidências inequívocas de autoria ou participação em crimes de extrema gravidade. Nosso sistema processual penal ainda é pautado pela dicotomia prisão e liberdade, levando a Presunção de Inocência a interpretações equivocadas, sem qualquer relativização, mesmo quando há evidências e provas inequívocas de que os autores do crime têm responsabilidade penal pelo fato praticado e que, portanto, merecem uma resposta estatal, como diz a professora de Direito Processual Penal, Andréa Maria Nessralla Bahury.
Convém lembrar, como diz Roberto Livianu, promotor de Justiça em São Paulo, Doutor em Direito pela USP, que no ambiente jurídico internacional a presunção de inocência é vista como um norte jurídico e, jamais, como um “salvo conduto” impeditivo da prisão. Nesta linha - prossegue o jurista -, democracias modernas como a França e os Estados Unidos mandam criminosos para a prisão após a sentença de primeiro grau. Sequer esperam o resultado de eventual recurso ao tribunal.
Em outra vertente contrária, com uma visão detida apenas na literal disposição da Constituição Federal, o jurista José Afonso da Silva, no texto “A Consulta e Questão de Ordem”, diz que (...) o momento no qual uma decisão torna-se imodificável é o do trânsito em julgado, que se opera quando o conteúdo daquilo que foi decidido fica ao abrigo de qualquer impugnação através de recurso, daí a sua consequente imutabilidade. Dá-se aí a preclusão máxima com a coisa julgada, antes da qual, por força do princípio da presunção de inocência, não se pode executar a pena nem definitiva nem provisoriamente, sob pena de infringência à Constituição (...).
O entendimento majoritário entende que a presunção de inocência nada mais é do que o estado que o indivíduo possui até que a acusação consiga provar que ele é culpado, até que não reste nenhuma instância e nenhum recurso a apreciar a questão. Tudo, portanto, respeitando-se os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
Como se nota, a discussão não é de fácil desate. Enquanto houver o clamor público pela prisão do condenado em confronto com a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, a polêmica tende a não se esgotar. E deve se prolongar.
Entretanto, o que se espera é que o STF não abandone seu papel de guardião da Constituição para responder a anseios punitivistas. O processualista Aury Lopes Jr., Doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS, diz que a presunção de inocência “significa uma proibição de tratar o acusado de forma igual ou análoga a de culpado, antes do trânsito em julgado”.
Em coautoria com Gustavo Badoró, na obra “Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável”, Aury Lopes mostrou “o tensionamento entre o ‘tempo do direito’ e o ‘tempo social’, especialmente em uma sociedade regida pela velocidade (dromologia) como a nossa. Há que se respeitar o tempo do direito, pois ele nunca conseguirá (ou mesmo deveria) atuar na dinâmica do imediato e corresponder as nossas ambições de uma justiça imediata e hiperacelerada (e a prisão cautelar tem um efeito sedante e gera essa ilusão). Isso não quer dizer, tampouco, que o processo deva demorar demais ou ser infindável. Há que se encontrar o difícil equilíbrio entre a (de)mora jurisdicional e o atropelo de direitos e garantias fundamentais. Devemos buscar a diminuição dos ‘tempos mortos’ (Chiavario) e melhorar a dinâmica procedimental”.
Na minha visão, com minha modesta experiência, a confusão reside no fato de que há uma diferença fundamental entre “prisão processual” e “prisão por condenação”.
Na primeira, resultante da prisão em flagrante, preventiva e temporária, conhecida também como “prisão provisória”, realiza-se somente em caráter excepcional, com natureza de prisão acautelatória e/ou instrumental, decorrente, pois, da necessidade de preservação da efetividade do processo penal e o fim por este buscado, qual seja a condenação do réu para garantir a segurança da sociedade ameaçada.
Na segunda, ou seja, na “prisão por condenação”, decorrente de sentença condenatória confirmada em Segunda Instância, ainda que esgotado o exame das questões de fato insertas à culpabilidade do réu, tal prisão encontra óbice na norma constitucional segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Diante do obstáculo, cabe, então, ao juiz ou ao tribunal avaliar cada caso concreto para determinar a prisão do condenado em Segunda Instância. Repita-se: havendo, por exemplo, periculosidade do agente criminoso condenado, com histórico de reincidência, sem residência fixa e ocupação habitual, cuja liberdade poderá acarretar insegurança para a sociedade, impõe-se a prisão deste ainda que milite em seu favor os recursos processuais para as Instâncias Superiores antes do trânsito em julgado. Para criminosos que apresentarem tais características na instrução criminal, mitiga-se a presunção de inocência.