Polêmica das Cláusulas Pétreas

Polêmica das Cláusulas Pétreas

A questão que envolve a garantia e/ou princípio constitucional da presunção da inocência tem gerado muita polêmica no cenário jurídico nacional quando o assunto é confrontado com a “condenação em 2ª Instância”.

Atendendo ao que reza a Constituição Federal, no seu inciso LVII, do art. 5º, de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alterando novamente a jurisprudência para não mais permitir a prisão logo após decisão colegiada, impõe uma discussão mais ampla sobre as cláusulas pétreas da Lei Maior, entre as quais se insere a presunção de não-culpa.

A última decisão do STF se prestou unicamente ao exame da constitucionalidade ou não do art. 283, do Código do Processo Penal (CPP), que tem a seguinte redação: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)”.

Entendeu a Corte que o dispositivo é constitucional e, por conseguinte, a prisão de um condenado somente deve ocorrer quando, por exemplo, comportar justificadamente a prisão preventiva, conforme cada caso analisado concretamente.

O § 4º, do art. 60, da vigente Constituição trás em si quatro situações para se identificar as cláusulas consideradas pétreas, ou seja, cláusulas imutáveis e que somente poderão ser alteradas através de uma Assembleia Constituinte, que possa editar uma nova Constituição, quais sejam: “o voto direto, secreto, universal e periódico”; “a separação dos Poderes”; e “os direitos e garantias individuais”.

É dentro dos direitos e garantias individuais que se insere a garantia e/ou princípio da presunção da inocência.

Cláusulas pétreas são espécies de segurança da sociedade. São ideais e valores do Poder Constituinte originário. Representam espécies de identidade da Constituição. Que não podem ser abolidas ou suprimidas do nosso Texto Maior apenas o desejo reformador. “A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de "originário") não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. (ADI 2.356 MC e ADI 2.362 MC, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011)”.

Assim, em que pese ser possível alterar a Carta Magna, as Emendas Constitucionais sempre deverão observar as balizas que foram traçadas nas cláusulas pétreas.

Portanto, é imperioso que todos se convençam de que as cláusulas pétreas alcançam o patamar mais importante e mais elevado na Constituição Federal, inseridas que foram no nosso Direito Positivo como situações jurídico-legais intangíveis dentro do que sejam os “fundamentos da República”, servindo, portanto, como “limitadores” ao poder de reforma apenas por reformar.

Implica dizer que o Congresso Nacional somente poderá alterar uma cláusula pétrea para ampliar o seu “espectro jurídico”. Não para restringi-lo! Assim, qualquer alteração ao princípio da presunção da inocência somente poderá ocorrer por uma Constituinte. Porém, limitando-se a observar o óbice de que a presunção da inocência não poderá sofrer reduções.

As limitações ao poder de reformar a Carta Magna possuem dois aspectos: materiais e formais. A proteção ao núcleo essencial é a proibição de qualquer emenda à Constituição que seja tendente a suprimir ou abolir o núcleo do texto constitucional, de modo a incorrer em vício de inconstitucionalidade.

Segundo Shamara Ferreira, graduada em Direito pela PUC Goiás, associada ao Instituto de Estudos Avançados em Direito e membro dos núcleos Universitário, Direito Penal, Direito Processual Civil e Direito Constitucional, “é possível, sim, alterar cláusulas pétreas. Mas, desde que seja para ampliar direitos e garantias individuais. E que se preserve o núcleo essencial da Constituição. Isso porque as cláusulas pétreas representam um esforço do legislador constituinte para assegurar a integridade da Constituição, impedindo que eventuais alterações provoquem a sua destruição, conservando o seu núcleo essencial, sendo a garantia da permanência da identidade da Constituição e dos seus princípios fundamentais. Todavia, as mudanças constitucionais são necessárias como meio de preservação e conservação da Constituição Federal, além do fato que a Constituição deve estar em harmonia com a realidade”.

Trazendo à colação o Direito Comparado, oportuno dizer que no sistema constitucional dos Estados Unidos, as cláusulas pétreas encontram equivalente nas “entrenchment clauses” (consolidação de cláusulas), que abrangem não apenas matérias de alteração completamente vedada por emenda, mas também matérias cuja alteração é especialmente dificultosa, mas não impossível.

No Brasil, as primeiras cláusulas pétreas explícitas surgiram com a Constituição de 1891, quais sejam: o regime republicano, a forma federativa de Estado e a igualdade de representação dos Estados no Senado (art. 90, § 4º). A Constituição de 1934 (art. 178, § 5º) retirou a igualdade de representação dos Estados no Senado. Mas manteve as demais cláusulas, que tinham sido previstas pela Constituição anterior. A Constituição de 1937, por seu turno, foi a única da história brasileira que não trouxe previsão de cláusula pétrea – na ditadura de Getúlio Vargas. Já Constituição de 1946, retomando o caminho das duas primeiras constituições da República, acrescentou uma terceira cláusula pétrea, dando ênfase maior ainda à forma federativa e ao regime republicano, ao prever que propostas tendentes a abolir tais institutos não seriam admitidas como objeto de deliberação. Em seguida as Constituições de 1967 e 1969 mantiveram praticamente a mesma redação a essas três previsões, a forma federativa, o regime republicano e a inadmissibilidade de propostas tendente a abolir tais institutos, como bem e sabiamente nos orienta Frederico Augusto Leopoldino Koehler, em “Reflexões acerca da legitimidade das cláusulas pétreas”. 

Em 1988, por fim, foi promulgada a atual Constituição da República, que dentre as constituições brasileiras, foi a que trouxe o maior rol de cláusulas pétreas, disciplinando-as no art. 60, § 4º, já transcrito.

Surge uma pergunta: “Cláusula Pétrea pode ser modificada?”.

Sim! Desde que não venha restringir direitos e sim ampliá-los com uma nova Assembleia Constituinte com o intuito de estender direitos e garantias. É possível, sim, uma Emenda para melhorar o Texto Constitucional vigente referente às cláusulas pétreas. Mas, nunca tendente a abolir ou restringir. Permitir que se possa limitar a garantia da presunção da inocência para ensejar prisão em 2ª Instância antes do trânsito em julgado de sentença condenatória para todos os casos “in infiniti”, sem passar pelo crivo de uma Constituinte, é querer enveredar para uma inconstitucionalidade gritante.

É verdade que há uma cobrança de parte da sociedade para que o crime seja enfrentado desde logo com a prisão do condenado em 2ª Instância. Criou-se até mesmo uma animosidade brasileira. Porém, a Constituição não poderá ter suas cláusulas pétreas alteradas substancialmente sem passar por um rigoroso processo legislativo constituinte – o mais legítimo possível. Isso porque a Constituição deve manter sua essência, seu alicerce e suas pilastras, não podendo ficar à mercê de uma realidade social mal definida e imprecisa, fruto de sentimentos punitivos sem avaliação jurídica criteriosa e convincente.

Diminuir a abrangência (espectro) da garantia, do direito e/ou princípio da presunção da inocência é subverter (revolver de baixo para cima; destruir; arruinar;...) a Constituição Federal, submergir, afundar, perverter; perturbar, desordenar, sublevar, conturbar, convulsionar e tumultuar a ordem jurídica vigente, inclusive com a absurda e inconstitucional ideia de aprovar uma reforma na lei processual penal com efeitos retroativos para prejudicar.
 

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