Polêmica do Juiz das Garantias
Polêmica do Juiz das Garantias
Em síntese, a Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que aperfeiçoa a legislação penal e processual penal brasileira, introduziu no novo Código de Processo Penal (CPP) a figura do Juiz das Garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado, previstos no art. 14, segundo o qual o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.
Atualmente, o juiz que participa da fase da investigação e da instrução processual é o mesmo que profere a sentença. Com a mudança, caberá ao Juiz das Garantias presidir a fase da investigação e ao juiz do processo julgar o caso – este tendo ampla liberdade em relação ao material colhido na fase de investigação.
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Compete ao Juiz das Garantias, especialmente:
• Controle da Legalidade do Flagrante e da Prisão Cautelar: receber a comunicação imediata da prisão em flagrante no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro horas), devendo o Juiz das Garantias promover audiência de custódia com a presença do conduzido, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público (a desobediência caracteriza abuso de autoridade). Na audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312, do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares da prisão, vedada a prisão de ofício (CPP, art. 311), ou, III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (vide art. 9º, Lei 13.689/19). O não recebimento da prisão em flagrante no prazo de 24 horas, implica em relaxamento da prisão ilegal (4º, do art. 310, CPP), apuração de responsabilidades, podendo o Juiz das Garantias decretar depois a prisão preventiva, devidamente fundamentada.
• Controle das investigações e violação da duração razoável: A investigação criminal deve ser informada ao Juiz das Garantias, pouco importando se no âmbito do Ministério Público ou outra Instituição, devendo-se controlar os respectivos prazos (CPP, art. 3-B, IV c/c § 2º), requisição de documentos e andamento (CPP, art. 3-B, X), trancando investigações desprovidas de fundamentos (CPP, art. 3-B, IX).
• Garantir os direitos dos investigados e conduzidos: Além de observar pelos direitos do preso, inclusive podendo determinar seja trazido, a qualquer tempo, para esclarecimentos vinculados à violação de direitos, deve garantir acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos na investigação, salvo as diligências em andamento. Em caso de dúvidas, deve realizar o exame de sanidade mental (CPP, art. 3-B, XIII). Deverá vedar o uso da imagem do preso, até porque abuso de autoridade (art. 13, I e II, da Lei 13.689/19). Será competente para conhecer e julgar dos habeas corpus impetrados antes do recebimento da denúncia (ato também do Juiz das Garantias, inc. XIV).
• Produzir antecipadamente provas: se houver necessidade de produção de provas, a requerimento das partes/jogadores, nunca de ofício, demonstrada a urgência, relevância e proporcionalidade, o ato pode ser realizado, garantido o contraditório e direito ao confronto, em decisão concretamente fundamentada (STJ, Súmula 455).
• Analisar as cautelares probatórias: Cabe ao juiz das Garantias analisar os pedidos de (i) interceptação telefônica; (ii) afastamento dos sigilos (fiscal, bancário, de dados e telefônico); (iii) busca e apreensão domiciliar; (iv) acesso à informações sigilosas e outros meios de provas.
• Homologar delação premiada e acordo de não persecução penal: Faremos uma coluna específica sobre o tema. Mas o que importa no momento é que será da competência do Juiz das Garantias quando formulada no decorrer da investigação. Teremos problemas de acomodação no caso do julgamento com foro de Prerrogativa de Função, mas nada que impeça a utilização da lógica de separação de funções.
• Receber a denúncia: O Juiz das Garantias receberá a denúncia e determinará a citação do acusado, analisando a absolvição sumária. Superada esta fase, remetará ao juiz de Julgamento para realização de instrução e julgamento (CPP, art. 3º-B, XIV), art. 3º-C, § 1º). A cisão aqui é funcional e serve para não contaminar os atos probatórios realizados oralmente das decisões antecedentes que embora possam ser revistas (CPP, art. 3º-B, §2º),
Um dado importante: a nova lei acaba com a prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz. Somente poderá ocorrer por requerimento do delegado, do Ministério Público ou do assistente da acusação.
Juiz das Garantias e a Cultura da Imparcialidade
Quem defende a instituição do Juiz das Garantias no Processo Penal brasileiro entende que a ideia é que não haja confusão entre as funções de acusar e as funções de julgar. Isso é uma forma de garantir que os direitos dos cidadãos investigados sejam garantidos e respeitados, que, enfim, não sofram abusos. "É uma questão de neutralidade", explica Edson Luz Knippel, professor de Direito do Mackenzie. "Um juiz que, por exemplo, defere uma busca e apreensão, de certa forma já se posicionou em relação àquela prova. Um juiz que dá a sentença sem se envolver no processo vai ter uma visão muito mais imparcial", afirma o criminalista.
“A inserção do juiz das garantias é um passo importante para o aprimoramento do Processo Penal, que passa também a incorporar de modo explícito a sistemática acusatória, acentuando e organizando os papéis separados de acusar e julgar. Entretanto, o fato do juiz das garantias ter sido extraído de um projeto de CPP concebido há bastante tempo e, portanto, um projeto que pensava em agregar todas as leis processuais, pode trazer percalços sistêmicos. Exemplo é a lei de interceptações telefônicas (Lei 9.296/96), que no art. 1º diz que o juiz que determina a interceptação deve ser o juiz da ação principal. Nesse ponto, há um risco sério de insegurança jurídica porque o texto da lei de interceptações telefônicas ainda está mantido" – avalia o criminalista Fabrício de Oliveira Campos.
O advogado Rodrigo Mudrovitsch entende que o instituto alinha a prática processual penal brasileira ao que já é feito em outros ordenamentos. "Não há qualquer correlação lógica entre impunidade e a criação do juiz de garantias e certamente haverá, a partir de agora, uma conformação institucional mais adequada para os direitos fundamentais do investigado no âmbito do processo penal".
Na minha modesta visão, temos que implantar com a máxima urgência no sistema processual brasileiro a Cultura da Imparcialidade. Oportuno citar, como Direito Comparado, que na França instituiu-se a Lei 2000-516, de 15 de junho de 2000, que dispõe sobre a figura jurídica do “juge des libertés et de la détention” (o juiz das liberdades), análoga ao Juiz das Garantias no Brasil, conhecida naquele país europeu como a “lei sobre a presunção de inocência”. Aqui no Brasil, o Juiz das Garantias poderá, com o passar do tempo, aperfeiçoar, inclusive, a Cultura da Imparcialidade, devendo o juiz que vai julgar postar-se obrigatoriamente pelo princípio da presunção de inocência diante da ação penal que lhe foi entregue pelo Juiz das Garantias com respeito às posições, narrativas e provas da acusação e do réu – o equilíbrio da balança no sentido mais sublime para aplicar justiça e não justiçamento.
Com o Juiz das Garantias haverá uma imperativa limitação à competência do delegado de polícia para presidir ilimitadamente o inquérito policial. Para o professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, Alamiro Velludo Salvador Netto, a instituição do Juiz das Garantias “é uma oportunidade de sairmos do medievalismo investigatório. Existe no Brasil, ainda hoje, uma figura que foi abolida em praticamente todos os ordenamentos ocidentais, portanto, aqueles que nos inspiraram e nos inspiram juridicamente. Em primeiro lugar, o fim do inquérito policial. Deve existir uma investigação, mas ela deve ser controlada por um juiz de garantias, diferente de um juiz que julga o mérito da causa”.
Para o professor Salvador Netto, é necessário que haja uma fiscalização constante da investigação – seja ela levada a cabo pela polícia, pelo Ministério Público – por um magistrado que não vai ser o mesmo responsável pela instrução posterior do processo, nem tampouco aquele que vai julgar a ação penal.
A Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que aperfeiçoa a legislação penal e processual penal brasileira, introduzindo no novo Código de Processo Penal modificações quanto ao inovador instituto, dispõe que o Juiz das Garantias deve “ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal” (inciso IV, do art. 3°); também de que o Juiz das Garantias pode “determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento (inciso IX, do art. 3°)”. Os requisitos agora impostos de forma imperativa limitam o poder do delegado de polícia na investigação criminal.
Assim, com o Juiz das Garantias estabelece-se uma isonomia entre acusação e defesa desde o início da investigação criminal. Atuará na cuidadosa preservação de direitos para afastar abusos na investigação policial e na persecução penal. Seu perfil ideal, claro, não é como investigador ou instrutor. Nada disso! Mas, como controlador da legalidade e garantidor do respeito aos direitos fundamentais. Prevalecendo, portanto, o princípio da imparcialidade desde o nascedouro do processo-crime.
A justificativa para a criação do Juiz das Garantias – diz o jurista Gustavo de Oliveira da Luz - é a de acabar com as negativas consequências geradas quando se aliam os juízes que são instados a atuar na fase da investigação e os delegados de polícia, perdendo-se a isenção e a imparcialidade imprescindíveis para que posteriormente possam atuar na fase processual, decidindo o mérito de processos criminais.
Historicamente, o Juiz das Garantias tem caráter universal, cuja definição “lato sensu” consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo X, “verbis”: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.
Dificuldades
A polêmica é forte. E tende a se estender ao longo do tempo. Para a maioria dos analistas, juristas, jurisconsultos e advogados a questão prática para que funcione o Juiz das Garantias talvez seja a mais complexa. E, quiçá, de dificultosa e temerária implantação. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por exemplo, divulgou nota dizendo que vê a medida com preocupação "em virtude dos custos relacionados à sua implementação e operacionalização".
A AMB divulgou nota se posicionando contra. "A implementação do instituto “juiz de garantias” depende da criação e provimento de mais cargos na Magistratura, o que não pode ser feito em exíguos trinta dias, prazo da entrada em vigor da lei. A instituição do “juiz de garantias” demanda o provimento de, ao menos, mais um cargo de magistrado para cada comarca — isso pressupondo que um único magistrado seria suficiente para conduzir todas as investigações criminais afetas à competência daquela unidade judiciária, o que impacta de forma muito negativa todos os tribunais do País, estaduais e federais".
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), com pedido de liminar, junto ao Supremo Tribunal Federal contra os artigos 3-A, 3-B, 3-C, 3-D, 3-E e 3-F, da Lei 13.964/19 ("pacote anticrime"), que instituem a figura do Juiz das Garantias. Há também um pedido de liminar para suspender os efeitos da criação dessa figura jurídica até o julgamento do mérito da ADI.
Segundo a Ajufe e a AMB, "se não for suspensa a eficácia dos dispositivos aqui impugnados estarão os tribunais compelidos a adotar, cada qual, uma disciplina melhor ou pior, porém, certamente, diferentes entre si, para o fim de dar cumprimento à lei que, em princípio, possui eficácia limitada".
A lei sancionada entra em vigor a partir de 23 de janeiro de 2020.