Juiz das Garantias e Princípios de Bangalore
Juiz das Garantias e Princípios de Bangalore
É cativante o debate sobre a instituição do Juiz das Garantias no Direito brasileiro. Vejo com bons olhos. Sobretudo pelo fortalecimento dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. O Juiz das Garantias coloca um “freio” logo no início da investigação criminal, no sentido de permitir que haja um contraditório pré-processual atencioso e respeitoso, impondo uma fiscalização jurisdicional na produção e, se for o caso, na rejeição de provas ainda que na fase policial. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse que é ‘uma conquista da cidadania’.
Quem estudou na faculdade Teoria Geral do Processo sabe perfeitamente que a imparcialidade do juiz, por exemplo, não é apenas uma garantia do cidadão. É, imperativamente, uma característica que define a jurisdição e, por consequência, diferencia-a das demais manifestações de poder no Estado de Direito. “A jurisdição não existe se não for imparcial. Isto deve ser devidamente esclarecido: não se trata de que a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua função, mas que sem imparcialidade não há jurisdição. A imparcialidade é a essência da jurisdicionariedade e não o seu acidente” (Eugênio Raul Zaffaroni, “Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos”, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 86 e 91).
- Participe do nosso grupo de WhatsApp
- Participe do nosso grupo de Telegram
- Confira os jogos e classificação dos principais campeonatos
Pela Teoria Geral do Processo colhemos o ensinamento profissional de que não cabe ao juiz, no normal funcionamento do sistema acusatório, influenciar na coleta das provas e, muito menos, direcionar, ajustar ou combinar estratégias de investigação, de condução da acusação em juízo ou ainda, no plano extraprocessual, de estimular ou solicitar ao Ministério Público que adote determinadas estratégias de comunicação social que explorem aspectos desfavoráveis aos réus de qualquer processo-crime.
Infelizmente, muitos profissionais do Direito não sabem! Mas, a instituição do Juiz das Garantias vem atender, precipuamente, a elevada função de distribuir justiça. Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) reuniu em Viena o Grupo de Integridade Judiciária para discutir o tema. E em abril de 2001, na cidade indiana de Bangalore, foram editados seis valores principais para o direcionamento da atividade judiciária, denominados de “Princípios de Bangalore”, assim elencados: “independência”, “imparcialidade”, “integridade”, “idoneidade”, “igualdade” e “competência” (diligência).
Em agosto de 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Brasil aprovou o texto do Código de Ética da Magistratura Nacional, documento no qual são realçados os princípios mais nobres que devem nortear o Poder Judiciário. E todos eles assentados nos “Princípios de Bangalore”, nos quais se baseou agora a instituição do Juiz das Garantias. Poucos sabem disso! É por isso que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, mestre em Direito, provocou: “Há muitas críticas sobre o “juiz de garantias”, sem, contudo, se procurar entender do que se trata”.
Em verdade, os “Princípios de Bangalore” representam um Código Judicial em âmbito global, de observância universal, elaborado com base em outros códigos e estatutos, nacionais, regionais e internacionais sobre o tema, dentre eles se destaca a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU.
Vamos, então, conhecer os “Princípios de Bangalore” como alicerce para o Juiz das Garantias:
INDEPENDÊNCIA
"A independência judicial é um pré-requisito do estado de Direito e uma garantia fundamental de um julgamento justo. Um juiz, conseqüentemente, deverá apoiar e ser o exemplo da independência judicial tanto no seu aspecto individual quanto no aspecto institucional."
Aplicação
1.1 Um juiz deve exercer a função judicial de modo independente, com base na avaliação dos fatos e de acordo com um consciente entendimento da lei, livre de qualquer influência estranha, induções, pressões, ameaças ou interferência, direta ou indireta de qualquer organização ou de qualquer razão.
1.2 Um juiz deverá ser independente com relação à sociedade em geral e com relação às partes na disputa que terá de julgar.
1.3 Um juiz não só deverá ser isento de conexões inapropriadas e influência dos ramos executivo e legislativo do governo, mas deve também parecer livre delas, para um observador sensato.
1.4 Ao desempenhar a função judicial, um juiz deverá fazê-lo de modo independente dos colegas quanto à decisão que é obrigado a tomar independentemente.
1.5 Um juiz deve encorajar e garantir proteção para a exoneração das obrigações judiciais de modo a manter e fortalecer a independência institucional e operacional do Judiciário.
1.6 Um juiz deve exibir e promover altos padrões de conduta judicial de ordem a reforçar a confiança do público no Judiciário, a qual é fundamental para manutenção da independência judicial.
IMPARCIALIDADE
"A imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão."
Aplicação
2.1 Um juiz deve executar suas obrigações sem favorecimento, parcialidade ou preconceito.
2.2 Um juiz deve se assegurar de que sua conduta, tanto na corte quanto fora dela, mantém e intensifica a confiança do público, dos profissionais legais e dos litigantes na imparcialidade do Judiciário.
2.3 Um juiz deve, tanto quanto possível, conduzir-se de modo a minimizar as ocasiões em que será necessário ser desqualificado para ouvir ou decidir casos.
2.4 Um juiz não deve intencionalmente, quando o procedimento é prévio ou poderia sê-lo, fazer qualquer comentário que possa razoavelmente ser considerado como capaz de afetar o resultado de tal procedimento ou danificar a manifesta justiça do processo. Nem deve o juiz fazer qualquer comentário em público, ou de outra maneira, que possa afetar o julgamento justo de qualquer pessoa ou assunto.
2.5 Um juiz deve considerar-se suspeito ou impedido de participar em qualquer caso em que não é habilitado a decidir o problema imparcialmente ou naqueles em que pode parecer a um observador sensato como não-habilitado a decidir imparcialmente.
INTEGRIDADE
"A integridade é essencial para a apropriada desincumbência dos deveres do ofício judicial."
Aplicação
3.1 Um juiz assegurar-se-á de que sua conduta esteja acima de reprimenda do ponto de vista de um observador sensato.
3.2 O comportamento e a conduta de um juiz devem reafirmar a fé das pessoas na integridade do Judiciário. A justiça não deve meramente ser feita, mas deve ser vista como tendo sido feita.
IDONEIDADE
"A idoneidade e a aparência de idoneidade são essenciais ao desempenho de todas as atividades do juiz."
Aplicação
4.1 Um juiz deve evitar a falta de idoneidade e a aparência de falta de idoneidade em todas as suas atividades.
4.2 Como objeto de constante observação por parte do público, um juiz deve aceitar as restrições pessoais que podem parecer limitações para os cidadãos comuns e deve fazê-lo de modo livre e com disposição. Em particular, um juiz deve conduzir-se de maneira consistente com a dignidade do ofício judicial.
4.3 Um juiz deve, em suas relações pessoais com membros de profissões legais que atuem regularmente na sua corte, evitar situações que possam razoavelmente levantar suspeita ou aparência de favoritismo ou parcialidade.
4.4 Um juiz não deve participar na resolução de processo em que qualquer membro da sua família representa um litigante ou é associado de qualquer maneira ao caso.
4.5 Um juiz não deve permitir o uso de sua residência por um advogado para receber clientes ou outros advogados.
4.6 Um juiz, como qualquer outro cidadão tem direito à liberdade de expressão, crença, associação e reunião de pessoas, mas ao exercer tais direitos, deve sempre conduzir-se de maneira tal que preserve a dignidade do ofício judicante e a independência do Judiciário.
4.7 Um juiz deve se informar sobre os seus interesses pessoais, fiduciários e financeiros e deve fazer um esforço razoável para ser informadosobre os interesses financeiros dos membros de sua família.
4.8 Um juiz não permitirá que os relacionamentos sociais ou outros relacionamentos de sua família influenciem impropriamente a conduta judicial e a sua capacidade de julgamento como um juiz.
4.9 Um juiz não deve usar ou pôr à disposição o prestígio do cargo para promover os seus interesses privados, de um membro de sua família ou quem quer que seja, nem deve transmitir ou permitir que outros transmitam a impressão de que qualquer um está em uma posição especial, capaz de indevidamente influenciá-lo no desempenho das obrigações do ofício.
4.10 A informação confidencial adquirida pelo juiz em razão do cargo não deve ser usada ou revelada pelo juiz para qualquer propósito não relacionado com os deveres do juiz.
4.11 Como objeto de um desempenho apropriado dos deveres judiciais, um juiz pode:
4.11.1 escrever, dar palestras, ensinar e participar em atividades referentes à lei, ao sistema legal, à administração da justiça ou matérias relacionadas;
4.11.2 comparecer a uma audiência pública, perante um corpo oficial, relacionada às matérias afetas à lei, ao sistema legal, à administração da justiça ou assuntos interligados;
4.11.3 servir como membro em um corpo oficial ou outra comissão governamental, comitê ou corpo consultivo se essa participação não é inconsistente com a percepção de imparcialidade e neutralidade política de um juiz;
4.11.4 envolvimento com outras atividades, se tais atividades não rebaixarem a dignidade do cargo nem interferirem de outra maneira com o desempenho dos deveres judiciais;
4.12 Um juiz não deve exercer a advocacia enquanto ocupar o cargo.
4.13 Um juiz pode formar ou se juntar a associações de juízes ou participar de organizações representado os interesses da categoria.
4.14 Um juiz e os membros de sua família nem pedirão, nem aceitarão, qualquer presente, doação, empréstimo ou favor com relação a qualquer coisa feita, a ser feita, ou omitida de ter sido feita pelo juiz em conexão com o desempenho dos deveres judiciais.
4.15 Um juiz não permitirá deliberadamente que um funcionário de sua equipe ou outros, sujeitos a sua influência, direção ou autoridade, peça, aceite qualquer presente, doação, empréstimo ou favor com relação a qualquer coisa feita, a ser feita ou omitida de ter sido feita em conexão com seus deveres funcionais.
4.16 Sempre sujeitos à lei e a qualquer exigência legal de exposição pública, um juiz pode receber um presente representativo de uma certa situação, uma concessão ou um benefício apropriado para ocasião na qual se deu, sob a condição de que o presente, concessão ou benefício não possa ser percebido, de acordo com o bom senso, como tendente a influenciar o juiz no desempenho de seus deveres ou, de outro modo, dar a aparência de parcialidade.
IGUALDADE
"Assegurar a igualdade de tratamento de todos perante as cortes é essencial para a devida execução do ofício judicial."
Aplicação
5.1 Um juiz deve ser ciente e compreensivo quanto à diversidade na sociedade e às diferenças que surgem de várias fontes, incluindo (mas não limitadas à) raça, cor, sexo, religião, origem nacional, casta, deficiência, idade, estado civil, orientação sexual, status social e econômico e outras causas (“razões indevidas”).
5.2 Um juiz não deve, no desempenho dos deveres judiciais, manifestar, por palavras ou conduta, parcialidade ou preconceito dirigido a qualquer pessoa ou grupo com base em razões indevidas.
5.3 Um juiz cumprirá os deveres judiciais com a apropriada consideração para com todos, tais como as partes, testemunhas, advogados, funcionários da corte e outros juízes, sem fazer distinção fundada em qualquer motivo irrelevante ou secundário para a devida execução de tais obrigações.
5.4 Um juiz não deve deliberadamente permitir que os funcionários da corte ou outros, sujeitos à sua influência, direção ou controle, discriminem, em qualquer grau, pessoas envolvidas em um problema submetido a seu julgamento.
5.5 Um juiz deve pedir aos advogados de um processo que se abstenham de fazer manifestações, por palavras ou conduta, de parcialidade ou preconceito baseado em motivos irrelevantes, exceto se tais motivos são legalmente relevantes para um assunto em discussão e podem ser objeto de legítima advocacia.
COMPETÊNCIA (DILIGÊNCIA)
"Competência e diligência são pré-requisitos da devida execução do ofício judicante."
Aplicação
6.1 Os deveres profissionais de um juiz tem precedência sobre todas as outras atividades.
6.2 Um juiz deve devotar sua atividade profissional aos deveres judiciais, os quais incluem não apenas a execução das funções judiciais e responsabilidades na corte e a confecção de decisões, mas também outras relevantes tarefas para o gabinete judicial ou para as operações da corte.
6.3 Um juiz deve tomar medidas sensatas para manter e aumentar o seu conhecimento, habilidade e qualidades pessoais necessárias para a execução apropriada dos deveres judiciais, tomando vantagem, para esse fim, de treinamentos e outros recursos que possam estar disponíveis, sob controle judicial, para os juízes.
6.4 Um juiz deve manter-se informado sobre acontecimentos relevantes na lei internacional, incluindo convenções internacionais e outros instrumentos estabelecendo normas sobre direito humanos.
6.5 Um juiz deve executar todos os seus deveres, incluindo a entrega de decisões reservadas, eficientemente, de modo justo e com razoável pontualidade.
6.6 Um juiz deve manter a ordem e o decoro em todos os procedimentos da corte e ser paciente, digno e cortês com relação aos litigantes, jurados, testemunhas, advogados e outros com os quais deva lidar em sua capacidade oficial. O juiz deve requerer conduta semelhante dos representantes legais, funcionários da corte e outros sujeitos à sua influência, direção ou controle.
6.7 Um juiz não deve se envolver com condutas incompatíveis com o cumprimento diligente dos deveres judiciais.
“Ainda em sede de lições elementares, todo magistrado, ao ingressar nas escolas judiciais, nas quais receberá sua formação inicial, deverá ler e estudar os “Princípios de Bangalore de Conduta Judicial”, elaborados pelo grupo de integridade da Organização das Nações Unidas”. (...) “Dito isso, se a volta ao estudo dos princípios da Teoria Geral do Processo e do Direito Processual Penal ou mesmo das primeiras lições de ética e conduta judicial não forem suficientes para demonstrar como as condutas de um juiz que se torna chefe de uma equipe de investigadores e promotores são parciais, inadequadas, danosas para o processo e para o próprio Poder Judiciário pela fragilização de sua credibilidade, talvez seja necessário o auxílio de outros campos do conhecimento” (Claudia Maria Dadico, doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, mestre em Direito Processual pela USP, Juíza Federal e conselheira da Associação Juízes para a Democracia).