Lei do Abuso de Autoridade

Lei do Abuso de Autoridade

O enfoque da nova Lei do Abuso de Autoridade (prefiro esta nomenclatura) coloca a Magistratura, o Ministério Público, a Polícia e todos os agentes públicos em situação vexatória em um primeiro momento. Aturdidos! Não para aqueles são ciosos cumpridores dos seus deveres funcionais, mas para os que temem uma possível incriminação por excessos e injustiças.

A lei anterior (Lei n° 4.898/65), agora revogada, que regulava o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal nos casos de crime de abuso de autoridade, era tecnicamente frágil e não mais satisfazia o anseio da população pós-Constituição de 88. Era uma lei editada na época da Ditadura Militar. Não tinha como se adaptar aos tempos atuais. Os tipos penais ali prescritos eram abertos e não taxativos, deixavam-nos à livre interpretação doutrinária e jurisprudencial.

Com a nova lei (Lei n° 13.869/19) tudo ficou mais claro, delineado, imperativo, taxativo e irrebatível. Para tanto, basta uma incursão a alguns de seus artigos que trazem regras bastante claras:

Art. 9º. Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Art. 10.  Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:

Art. 13.  Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência.

Art. 16.  Deixar de identificar-se ou identificar-se falsamente ao preso por ocasião de sua captura ou quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão:

Art. 18.  Submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito ou se ele, devidamente assistido, consentir em prestar declarações:

Art. 19.  Impedir ou retardar, injustificadamente, o envio de pleito de preso à autoridade judiciária competente para a apreciação da legalidade de sua prisão ou das circunstâncias de sua custódia:

Art. 20.  Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado: 

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Art. 23.  Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade:

Art. 30.  Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: 

Art. 31.  Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado:

Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Art. 38.  Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação: 

Não raro, todos esses crimes foram praticados durante anos e anos no Brasil. E com a conivência de muitos. A essência da nova lei mostra que avançamos neste aspecto. Não para fazer uma “caça as bruxas”, mas para que haja uma nova mentalidade quanto ao proceder da autoridade brasileira, seja a nível judicial, ministerial, policial ou administrativo.

Inadvertidamente, há quem diga que a nova Lei do Abuso de Autoridade foi editada em momento impróprio. Como uma espécie de retaliação à Operação Lava Jato. Na opinião do desembargador Guilherme Nucci, do Tribunal de Justiça de São Paulo, “em teoria, isto pode ser sustentado; na prática, torna-se impossível. Todo o conjunto da nova lei de abuso de autoridade é favorável ao agente público. Pode-se argumentar que a nova lei de abuso de autoridade foi editada em época equivocada, pois pareceu uma resposta vingativa do Parlamento contra a Operação Lava Jato. Mas, na essência técnica, trata-se de uma lei absolutamente normal, sem nenhum vício de inconstitucionalidade”. E acrescenta: “Uma análise de alguns tipos penais é suficiente para demonstrar a vantagem da Lei 13.869/19 em contraste com a anterior”.

O desembargador faz questão de ressaltar uma situação corriqueira no Brasil: “Em vez de colocar no palco da mídia quem é culpado, deve-se guardar sigilo, respeitando-se a figura de todo réu. Por que antecipar culpa? E se a pessoa for absolvida? Quem retira da mente das pessoas a culpa lançada em rede social ou, pior, em rede nacional de TV e rádio? É preciso responsabilidade e absoluta honestidade para ser autoridade, exercendo o poder de suas atribuições. Não se pode banalizar a reputação alheia e jamais se deve eleger um alvo para perseguir, por mais culpado que ele possa parecer”. 

Quem tem medo da Lei do Abuso de Autoridade? Apenas os que agem de forma incorreta e autoritária. Os “fora da lei”. Claro! Autoridade nenhuma pode se arvorar “dona do mundo”.

“É indiscutível que nenhuma legislação nasce perfeita, muito menos as que amadurecem em um caminho histórico tão labiríntico. É possível, e mesmo necessário, que alguns dispositivos da lei tenham que ser submetidos a um teste de batimento à luz do texto constitucional. Todavia, a qualidade técnica da proposição aprovada é digna de destaque. A latitude da incidência da norma sujeita qualquer agente público ao seu escrutínio, do Presidente da República ao guarda de trânsito da esquina” – por Victor Oliveira Fernandes, assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal, Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).

Na Alemanha, diz Victor Fernandes, a legislação criminaliza a “violação ou torsão do Direito”, a Rechtsbeugung do §339 StGB, e ainda o delito de “persecução de inocente”, a Verfolgung Unschuldiger do §344 StGB. Na Espanha, o artigo 446 do Código Penal prevê a punição do "juiz ou magistrado que, intencionalmente, ditar sentença ou resolução injusta”. Este foi, inclusive, o dispositivo que fundamentou a condenação do juiz Espanhol Baltasar Garzón, por violação ao direito de defesa dos réus na ordenação de interceptações telefônicas ilegais.

Assim, sob a minha ótica, não há razão alguma para se temer a Lei do Abuso de Autoridade. É público e notório que o autoritarismo contagiou o país. A busca pelas garantias individuais deu lugar a uma universalização do arbítrio. “É preciso dizer o óbvio - como assevera Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD): o processo penal não é campo de batalha, o direito não pode ser confundido com a política, as garantias individuais não são um luxo renunciável em nome de uma suposta eficiência, o intérprete não tem discricionariedade para interpretar a lei contra o próprio texto e os juízes devem ser imparciais. (...) Ora, se os agentes públicos confiam que estão agindo conforme a lei e acreditam sinceramente no funcionamento da nossa justiça criminal (esse sistema do qual eles se dizem defensores é o mesmo que apuraria seus eventuais abusos), não há o que temer. A menos que o pau que bata em Chico não seja adequado para Francisco…”

Concluo com o raciocínio de Vladimir Passos de Freitas, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente: “Em um país que adotou, a partir da Constituição de 1988, a judicialização como regra, fazendo com que o Judiciário assumisse um protagonismo nunca visto na história do Brasil, com um número aproximado de 27 mil magistrados e agentes do Ministério Público em exercício, não é de admirar que surjam problemas”.

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