O Juiz e o Abuso de Autoridade

O Juiz e o Abuso de Autoridade

Recentemente, juízes criminais têm determinado e expedido uma série de mandados de alvarás de solturas para réus presos até pela prática de crimes graves, como homicídios e feminicídios. A atitude tem intrigado a sociedade. Que passa a especular de várias formas sobre tais decisões judiciais. Às vezes, de forma até malévola, colocando em dúvida a imparcialidade e a neutralidade do magistrado.

É preciso anotar que, hoje, no Brasil temos uma severa lei que define os crimes de abuso de autoridade cometidos por agentes públicos servidores ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído, máxime envolvendo representantes do Poder Judiciário.

Assim, as condutas definidas na Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, constitui crime de abuso de autoridade a prática por agente público com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, incluindo-se, evidentemente, os magistrados.

De conformidade com o cânone especificado, é sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, incluindo dentre os quais membros do Judiciário.

Para os efeitos da lei reputa-se agente público todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangida por vinculação ao poder público.
Com referência especificamente aos magistrados criminais, a lei pune com pena de 1 a 4 anos, e multa, a decretação de medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais.

Incorre na mesma infração a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de, primeiro, relaxar a prisão manifestamente ilegal; segundo, deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; e, por último, deixar de deferir liminar ou ordem de habeas corpus quando manifestamente cabível.

Diante da clareza e do império da legislação nossos juízes criminais ficaram numa encruzilhada: determinar ou não a soltura de presos em casos compatíveis ou poderão responder por crime de abuso de autoridade em quaisquer das hipóteses. Nasce, então, a sensação de intranquilidade jurisdicional com a possibilidade para que o juiz responda a um processo criminal e/ou administrativo desgastante de imagem pessoal e pública, com consequências sempre nefastas no meio social.

Inegavelmente, a lei trouxe uma enorme subjetividade para que o magistrado possa cometer abuso ao determinar ou manter uma prisão; ou relaxá-la, conforme cada caso concreto. O problema reside de modo muito especial na insegurança jurídica da decisão que o juiz deverá proferir. Induvidosamente, com a lei em vigor o magistrado tem e terá menos liberdade. Fica no mínimo limitado para esgotar na sua amplitude a prestação jurisdicional.

Para as entidades de classes dos juízes há uma preocupação reinante com relação, por exemplo, à hipótese de se punir o juiz que decretar medida privativa da liberdade “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Segundo as entidades, a previsão legal fere de morte a independência judicial e a autonomia do julgador para decidir conforme as provas colimadas para os autos.

O excesso de prazo na instrução criminal e os casos em que não estejam mais presentes os requisitos para a mantença da prisão de um réu têm preocupado nossos juízes. Também poderão incorrer na mesma infração quando, dentro de prazo razoável, o magistrado deixar de relaxar uma prisão manifestamente ilegal ou deixar de substituir uma prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória quando manifestamente cabível.

Em linhas gerais, conforme a análise bem elaborada por Ruchester Marreiros Barbosa, professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, devido a pressões sociais e políticas, os “histerismos” da Lei do Abuso de Autoridade se dão em razão de expressões abertas e subjetivas em diversas condutas típicas, como, por exemplo, “manifesta desconformidade”, (artigo 9º, caput); “dentro do prazo razoável”, (artigo 9º, parágrafo único); “manifestamente ilegal”, (artigo 9º, parágrafo único, I); “manifestamente cabível”, (artigo 9º, parágrafo único, II e III); “manifestamente descabida”, (artigo 10); “manifestamente ilícito”, (artigo 25).

Tudo isso representa insegurança para o juiz criminal brasileiro. Embora a lei apresente avanços no sentido de coibir condutas atípicas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar o próprio juiz ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal deste, é pertinente a preocupação com a insegurança jurídica no momento da prolação de decisões interlocutórias ou de sentenças. Instalando-se na mente do julgador uma dúvida para saber se deve prender ou não; ou, por outra circunstância, se deve manter preso ou libertar determinado réu no curso da instrução ou no momento da condenação.

“A independência da magistratura para julgar é pressuposto de toda e qualquer democracia no mundo. A criação de entraves ao julgamento sem medo de represálias do poder político e econômico, é a marca indelével de regimes autoritários, dominados pelo patrimonialismo e pela impunidade”, diz o juiz Geraldo Dutra de Andrade Neto, Presidente da Associação dos Magistrados do Paraná.

Na síntese jurídica de Andrade Neto colhemos um comentário sobre os efeitos da Lei do Abuso de Autoridade: “Em todo o território do país, o sentimento da Justiça é de luto. Os membros do Poder Judiciário correm o risco de serem transformados em burocratas intimidados, manietados no seu dever de cumprir sua árdua missão constitucional de julgar com isenção e em nome da democracia e da probidade”.

O presidente da Associação Mato-Grossense de Magistrados (Amam), juiz Tiago de Abreu, é mais enfático e demonstra sua profunda preocupação: “(...) Não podemos ser a favor da lei do abuso da forma como ela foi aprovada. Ela veio criminalizar a atividade do magistrado. (...) que magistrado, hoje, vai julgar de maneira tranquila e consciente tendo uma lei da mordaça no pescoço?”.

Roberto Delmanto, jurista de escol, diz que, “de todos os operadores do direito a tarefa do juiz é, sem dúvida, a mais árdua. Principalmente na área criminal, onde está em jogo a liberdade, bem maior que ao lado da honra faz parte da nossa dignidade. Por isso mesmo, está escrito no Livro dos Livros: assim como julgares sereis julgado”.

E aconselha: “O magistrado deve possuir inúmeras qualidades: integridade, vocação verdadeira, profundo sentimento de justiça, cultura não só jurídica, dedicação ao estudo e às causas que lhe são submetidas, discrição, coragem e humanidade. A coragem, segundo Aristóteles, é a mais importante delas porque garante as outras. Não deve ter receio de contrariar a opinião pública, seus pares ou a jurisprudência dominante.

Delmanto relembra para a grande lição de Ruy Barbosa: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se; mas, não há salvação para o juiz covarde".

Para o juiz - diz a máxima secular -, a covardia é tão nefasta quanto a venalidade. Então, penso eu, mesmo diante de uma lei limitadora da função jurisdicional nossos magistrados não podem e nem devem se intimidar, curvar-se à incúria. O cumprimento e a submissão à lei - função primordial da magistratura - sempre foram muito questionados no Brasil. Isso porque ao juiz incumbe a aplicação da lei, ainda que conflitante seu contexto. Por tratar-se de obrigação funcional, impõe-se ao magistrado agir com segurança se a favor ou contra, ainda que contestada sua decisão.

Arremato com a reflexão de João Baptista Herkenhoff, professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor: “Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é verdadeiro. Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbítrio”.

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