Nordestino e Cultura do Desprezo

Nordestino e Cultura do Desprezo

“O Brasil tem uma das mais eficientes legislações de combate ao crime de racismo, ao preconceito e à violência contra a mulher. Mas os que têm a raça, a cor, o gênero ou o local de nascimento do preconceito sabem que o Brasil não é o paraíso da igualdade que costuma declamar em versos e prosas. Os símbolos nazistas que voltam às ruas, a apologia ao estupro que recebe milhares de apoio, os nordestinos que são atacados e responsabilizados pelos resultados negativos do país, a homofobia assassina que estampa as manchetes policiais, o feminicídio que segue desenfeitando as estatísticas oficiais e os negros que permanecem tratados como desiguais desmontam qualquer mito ufanista do Brasil justo. O enfrentamento da questão, portanto, não está restrito ao campo da lei, até porque, como nos adverte a história, é mais fácil mudar uma lei do que a cabeça do homem” (Cezar Britto, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil).

Quando se imaginava que a grave questão tinha minimizado devido aos avanços sociais e educacionais no Nordeste, a região volta a ser alvo novamente de preconceito explícito como em épocas passadas, sobretudo aquelas patrocinadas pela humilhação da ditadura militar, que deixou a nobreza brasileira bem situada e locupletada financeiramente.

Pior é assistir o nordestino ficar calado. Não se mover contra a escalada dessa violência explícita. Hoje, como temos um governo para ricos, tem nordestino que prefere aplaudi-lo, o que é mais grave ainda.

O preconceito contra o Nordeste é antigo. Infelizmente, os locupletados do Brasil tratam os nordestinos até pejorativamente. Pior! Os nordestinos ricos, principalmente políticos que saquearam a região, encarregam-se para alastrar comentários ofensivos, revelando que o Brasil não está dividido somente por opção política, mas, também, por um preconceito latente.

Como sonhar com mudanças? Se os formadores de opinião, aqueles que são obrigados a nos defender nos traem covardemente? Observem-nos aos microfones de rádios e nos vídeos de TVs. Desdenham deles próprios dando gargalhadas. E, quando muito, omitem-se na defesa do Nordeste contra quem o ataca.

De onde vem tanto preconceito? De longe! Desde os tempos tenebrosos da ditadura militar! Com pais vivos ou não, essa trupe de canalhas e covardes se habituou a desprezar o Nordeste para atender interesses inconfessáveis de governantes de plantão. Atitude que reforça uma camuflada condição de inferioridade, que denuncia um complexo que o empurra para aplaudir e endeusar outras regiões a defender o seu e o nosso Nordeste.

Aqui no Piauí, por exemplo, é muito raro ouvir alguém em uma roda de conversas políticas amistosas ou não defender a região Nordeste. Raríssimo um discurso para afastar velhos paradigmas. Pelo contrário! Essa gente – elegante ou não - estimula o preconceito elogiando o governante ou a autoridade da vez quando esta assaca contra nosso povo. Tudo muito nojento!

Parafraseando Nelson Rodrigues, essa gente tem "complexo de vira-lata", fenômeno também conhecido como “viralatismo”, uma inferioridade e um complexo em que o “nordestino infame” se coloca, voluntariamente, em face de outras gentes. Um “narciso” às avessas, que cospe na própria imagem.

A ideia de que nossa gente é inferior ou degenerada não é nova e data pelo menos do século XIX, quando o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou em 1845 no Rio de Janeiro e chamou os cariocas de "verdadeiros macacos". O complexo, então, espalhou-se pelo país, “pagando o pato” o “nordestino infame”.

Historicamente, o “nordestino infame” contenta-se com pouco e sente-se satisfeito quando recebe alguma atenção por parte das autoridades. É uma auto-desqualificação rotulada pela infâmia da bajulação. Político “nordestino infame” quando quer alçar ao poder não mede consequências. Fala mal e incorretamente de si próprio e da região para chegar aonde quer, ainda que debochado por outras gentes.

“Quaisquer que tenham sido as intenções dos autores do golpe militar de 1964, seus efeitos mais perversos, de consequências que se prolongam, até hoje, são claros. O regime militar cometeu o crime de liquidar com a prática da democracia, condenando pelo menos duas gerações a desconhecerem, senão menosprezarem, os instrumentos políticos que permitem o verdadeiro desenvolvimento das sociedades. Para os nordestinos em particular seu dano mais nefasto foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do processo de reconstrução das anacrônicas estruturas agrárias e sociais de nosso país, numa região onde eram mais deletérios os efeitos do latifundismo e, paradoxalmente, mais profundo o movimento renovador em curso (Dossiê Celso Furtado).

No Piauí, por exemplo, causa revolta quando se ouve de políticos e de seus representantes que conviveram com o regime militar dizer que “os militares fizeram muito”. Fizeram! Como, assim? Lembram logo da construção de estradas. Que beneficiou as famílias deles. São cínicos!

Os anais da história registram que os anos 50 e 60 foram marcados por um intenso debate sobre a Educação brasileira. Muitos intelectuais e movimentos sociais formularam propostas para a primeira organização de um sistema nacional de ensino democrático e popular, que superasse as desigualdades socioculturais, formasse cidadãos conscientes de seus direitos e preparados para os desafios econômicos, sobretudo com os olhos voltados para a região Nordeste. Na época, fervilhavam projetos educacionais humanistas e inovadores.

Veio, então, a ditadura militar. Veio, então, a perseguição, que se instalou de forma sistemática e violentamente contra educadores que eram julgados como subversivos e contrários aos “interesses nacionais”. Tudo isso aplaudido como um “grande feito dos militares”. Os políticos governistas do Piauí, por exemplo, adoravam os militares. Controlavam tudo!

Na época, como uma genialidade inovadora, enquanto o educador Paulo Freire desejava substituir as cartilhas e os livros-textos por um processo pedagógico com “palavras geradoras” extraídas da linguagem corrente dos grupos locais e com ênfase na relação dialógica com as experiências de vida dos professores, estudantes e familiares, a ditadura militar implantou e impôs de “goela abaixo” o Mobral, uma aberração humilhante de educação dirigida para os pobres. Tanto que virou piada e termo pejorativo para cognominar um humilde, um desafortunado, um deseducado,...

Segundo o estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministério da Educação, o Mobral foi um "retumbante fracasso".

É intrigante! Por que militares e ex-militares detestam clássicos da nossa Literatura? Por que tanta aversão a intelectuais com condão para transformar gerações? Por que odeiam tanto? Por induzir insensibilidade, é por isso e outras coisas que perdem a razão!

Tortura e ausência de direitos humanos na ditadura

As torturas e assassinatos foram marcas mais violentas do período da ditadura militar. Pensar em direitos humanos era apenas um sonho. Havia até um manual de como os militares deveriam torturar para extrair confissões, com práticas como choques elétricos, afogamentos, sufocamentos, etc. Tudo ocorria nos porões do Exército e todos os preconceituosos, inclusive do Nordeste, aplaudiam.

Censura e ataque à imprensa na ditadura

Uma das marcas mais conhecidas da ditadura militar foi a censura pública e privada. Ela atingiu a produção artística e controlou com pulso firme a imprensa. Para tanto, os militares criaram o "Conselho Superior de Censura", que fiscalizava e enviava ao Tribunal da Censura os jornalistas e meios de comunicação que burlassem as regras. Os que não seguissem as regras e ousassem fazer críticas ao país, sofriam retaliações. Na época, cunhou-se até um slogan: "Brasil, ame-o ou deixe-o”. Uma verdadeira patifaria!

Amazônia e índios sob risco na ditadura

No governo militar teve início um processo amplo de devastação da Amazônia. O general Castelo Branco disse, certa vez, que era preciso "integrar para não entregar" a Amazônia. A partir dali, começou o desmatamento e muitos dos que se opuseram morreram. A ideia dos militares era que a Amazônia era "terra sem homens". E que deveria ser ocupada por "homens sem terra". A luta foi sangrenta. Hoje, observem o direcionamento.

Baixa representação política na ditadura

Um dos primeiros direitos outorgados aos militares na ditadura foi a possibilidade do governo suspender os direitos políticos do cidadão. Em outubro de 1965, o Ato Institucional número 2 acabou com o multipartidarismo e autorizou a existência de apenas dois partidos: Arena, dos governistas; MDB, dos opositores.

Saúde pública fragilizada na ditadura

Se a saúde pública, hoje, está longe do ideal, imagine no restrito regime militar. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento, com seus hospitais, mas era exclusivo aos trabalhadores formais. Aqui no Piauí, por exemplo, todos sabem perfeitamente identificar quais famílias poderosas “mandavam” no Inamps com apoio dos militares. Estes não enriqueciam, mas aquelas, sim!

"A imensa maioria da população não tinha acesso", conta o cardiologista Mário Fernando Lins, que atuou na época da ditadura. Surgiu então a prestação de serviço pago, com hospitais e clínicas privadas. Aqui no Piauí, por exemplo, a locupletação foi intensa!

Somente após a Constituição de 88 é que foi adotado o SUS (Sistema Único de Saúde), que hoje atende a uma parcela de 80% da população. Mas, no entanto, agora querem acabar.

Linha dura na educação na ditadura

A educação brasileira passou por mudanças intensas na ditadura. "O grande problema foi o controle sobre informações e ideologia, com o engessamento do currículo e da pressão sobre o cotidiano da sala de aula", sintetiza o historiador e professor da Universidade Federal de Alagoas, Luiz Sávio Almeida.

As disciplinas de filosofia e sociologia, diz o professor, foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e Política Brasileira, caracterizada pela transmissão da ideologia do regime autoritário, exaltando o nacionalismo e o civismo dos alunos e, segundo especialistas, privilegiando o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise) e Educação, Moral e Cívica. Ao mesmo tempo, com o baixo índice de investimento na escola pública, as unidades privadas prosperaram. Na iniciativa privada os militares deixaram muita gente rica. No Piauí, então!

Corrupção e falta de transparência na ditadura

No período da ditadura era praticamente impossível imaginar a sociedade civil organizada atuando para controlar gastos ou denunciando corrupção. Não havia conselhos de fiscalização. O Ministério Público brasileiro era um “arremedo” de instituição. As contas públicas não eram analisadas. “Lavavam a burra”! Olha só! Nem havia publicidade dos gastos públicos, como é, hoje, obrigatório.

Outro ponto sempre questionado no período de ditadura foram os recursos investidos em obras de grande porte, cujos gastos eram mantidos em sigilo. Isso mesmo, em sigilo! Era ordem! Obras faraônicas como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram realizadas sem qualquer possibilidade de controle. O Brasil nunca vai saber quanto realmente gastou! Mas, tem gente ainda hoje que defende essa gente!

Passado o regime, demonstrou-se, à saciedade, que a “corrupção da ditadura” não foi uma política de governo. Mas, sim, de Estado. Seu alvo foi somente a defesa de interesses econômicos de grupos particulares. Os militares morreram pobres, claro! Mas, deixaram muitos ricos. Aqui no Piauí, então!

Nordeste mais pobre e migração na ditadura

A consolidação do Nordeste como região mais pobre do país teve grande participação dos militares. "Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores indicadores nacionais de índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil e alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres no Nordeste aumentou de 19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação no total de pobres do país subiu de 43% para 53%", afirma o doutor em economia regional Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas.

O crescimento urbano registrado teve como efeito colateral a migração desregulada. "O modelo urbano-industrial reduziu as atividades agropecuárias, que eram determinantes na riqueza regional, com 41% do PIB, para apenas 14% do total em 1990", diz Péricles.

Desigualdade: bolo cresceu, mas não foi dividido na ditadura

"É preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo" - A frase é do então ministro da Fazenda, Delfim Netto, que, até hoje, e´uma das mais lembradas do regime militar. O tempo mostrou que o bolo cresceu, mas poucos comeram fatias dele.

Assim, na ditadura houve um aumento das desigualdades sociais. "Isso levou o país ao topo desse ranking mundial", diz o professor Cícero Péricles.

Precarização do trabalho na ditadura

Apesar de viver o "milagre brasileiro", a ditadura trouxe defasagem aos salários dos trabalhadores. "Nossa última ditadura cívico-militar foi, em certo ponto, economicamente exitosa porque permitiu a asfixia ao trabalho e, por consequência, a taxa salarial média", diz o doutor em ciências sociais e blogueiro do UOL, Leonardo Sakamoto. "Nada é tão atrativo ao capital do que a possibilidade de exercício de um poder monolítico, sem questionamentos", diz Sakamoto, que cita a asfixia dos sindicatos, a falta de liberdade de imprensa e política foram "tão atraentes a investidores que isso transformou a ditadura brasileira e o atual regime político e econômico chinês em registros históricos de como crescimento econômico acelerado e a violência institucional podem caminhar lado a lado".

Atraso histórico

Para Rose Nogueira, ex-presa, torturada política e coordenadora do Grupo Tortura Nunca Mais, o golpe militar de 64 resultou em um atraso histórico e que até hoje o povo brasileiro sofre as consequências daquele período. Em suma, o golpe aprofundou a miséria no Brasil. “Temos de conhecer essa história. E nossos filhos e nossos netos têm de aprender na escola o que aconteceu no Brasil depois com o golpe de 1964".

Para concluir, digo eu: Como nordestino e como modesto observador das questões sociais e políticas que nos rodeiam, quando vejo um irmão nordestino cultuando a ditadura militar penso logo que ele esteja, ainda que inadvertidamente, estimulando a “cultura do desprezo” para com todos nós, com ausência de estima, de apreço e de consideração. E, implicitamente, agredindo de forma sub-reptícia a dignidade humana como um direito inalienável e como um fundamento da liberdade, da justiça e da paz. É por isso que esse desprezo e esse desrespeito resultam às vezes em atos bárbaros e ultrajantes, que acabam por macular e indignar uma consciência cívica e moral bem formada.

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