Luz na escuridão

Luz na escuridão

O mundo todo sabe que o Brasil vive, hoje, sob a égide do golpe parlamentar-constitucional-judicial imposto aos brasileiros em 31 de agosto de 2016 com o impeachment da presidente legitimamente reeleita Dilma Rousseff levado a efeito pelo patronato midiático, a elite, a direita e a extrema-direita. 

Sabe também que tal impostura se deu em decorrência da quebra da normalidade institucional com o aniquilamento da Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em outubro de 1988. 

E um dos principais defeitos da ruptura do Estado Democrático de Direito é a readequação da judicialização pátria à nova ordem político-institucional do grupelho mandonista de plantão.  

Fato que incrementou o ativismo jurídico por parte dos golpistas no Poder Judiciário do País que processou, julgou, condenou e prendeu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para afastá-lo da disputa das eleições para o Palácio do Planalto em 2018, em pleno gozo do favoritismo eleitoral. 

Sobre essa anomalia jurídico-processual que atualmente ocorre em certos setores da Justiça brasileira, o jurista, escritor e ativista dos direitos humanos paraibano Agassiz Almeida, no artigo veiculado no Blog do Tião Lucena, intitulado “A busca do espetáculo e a (in) compreensão do direito: sobre acusados e tornozeleiras”, acendeu uma luz no fim do túnel. 

Excertos do texto do artigo: 

“A compreensão do Direito não vive seus melhores dias. Os fatos foram substituídos pelos vídeos, os resumos tomaram o lugar dos compêndios e o ensino jurídico converteu-se em uma estratégia para a aprovação em concursos públicos. A generalização da mediocridade na carreira jurídica começa nos bancos acadêmicos. Porém, também ocupa lugar de destaque entre magistrados, advogados, promotores e outros profissionais do Direito. Esse fenômeno não é de agora. Remonta ao início dos anos 1990. E talvez o maior símbolo dessa situação de verdadeira calamidade jurídica seja o voluntarismo ou ativismo judicial. 

O ativismo jurídico consiste, basicamente, na construção de decisões que não possuem respaldo no Direito e substituem as normas jurídicas pelo modo de pensar do magistrado. Aqui a personagem principal é o juiz que decide de acordo com a sua própria vontade. E qual é o problema desse tipo de decisão? O ativismo judicial contraria o Estado Democrático de Direito porque ele subverte, entre outros aspectos, a ideia clássica de que o governo das leis (ordem jurídica) é superior ao governo dos homens (vontade dos juízes). E os gregos antigos optaram pelo governo das leis porque observaram que a vontade dos homens não era confiável.

O ativismo judicial é um símbolo da mediocridade jurídica porque aqueles que fazem uso dele agem de má-fé ou não conhecem o sentido do Direito. Os que atuam de má-fé são medíocres porque apequenam o exercício da magistratura, agindo como legisladores sem representação popular ou como políticos de toga. Os que não conhecem o sentido do Direito, por sua vez, simbolizam a mediocridade pelo fato de serem incapazes de entender o seu próprio papel no momento histórico em que a decisão é tomada. Ambos os tipos de magistrados engrossam as fileiras dos profissionais do Direito que buscam ou aplaudem o espetáculo como forma de manifestação da Justiça Criminal.

A busca do espetáculo na persecução penal envolve má-fé ou falta de compreensão do Direito. A espetacularização é um artifício que procura trazer a opinião pública para dentro da investigação ou do processo. Consiste em criminalizar os imputados com o fim de condená-los moralmente e convertê-los em culpados ainda que isso ocorra à margem da lei e da Constituição. Trata-se de verdadeira ‘pirataria jurídica’, pois pretende substituir as provas e as garantias constitucionais pela pressão de determinados setores sociais. Em 04 de agosto de 2019, o ministro Gilmar Mendes, do STF, chegou a afirmar que a Operação Lava Jato - principal exemplo de utilização de espetáculo na persecução penal - era ‘uma organização criminosa para investigar pessoas’. 

‘O jurista pertence a uma dimensão da civilização, e civilização significa história, um contexto histórico determinado em toda a riqueza de suas expressões’ (Paolo Grossi). O espetáculo como forma de legitimar o julgamento dos acusados remonta ao período dos suplícios e das queimas de bruxas. Mesmo assim, apesar de o Direito atual girar em torno dos direitos fundamentais, a utilização do espetáculo foi retomada como método prático (legal) da investigação e aplicação da lei penal. Essa espetacularização do processo ocorre por meio de entrevistas coletivas, de convocação da imprensa para presenciar prisões, de vazamentos seletivos e mesmo por meio do modo como as decisões judiciais são escritas. 

Nas decisões e pedidos em que há o interesse de cooptar a opinião pública, é comum encontrar uma estrutura discursiva elaborada para fins exclusivamente midiáticos. No início das decisões, sobretudo quando elas envolvem o setor do Ministério Público que investiga o crime organizado (GAECO), há uma exposição preliminar que distribui a suposta responsabilidade criminal em grupos: núcleo empresarial, núcleo econômico etc. Esta é praticamente a única parte do texto divulgada pela imprensa e lida pelo público. Sem outros elementos, os imputados são condenados de antemão pela opinião pública, para a qual as provas, a Constituição ou a imparcialidade do juiz são irrelevantes. O espetáculo é necessário? 

O espetáculo é indispensável para que determinados setores da persecução penal possam alcançar objetivos (interferência eleitoral, promoção pessoal, condenação sem provas etc.) que não seriam possíveis sem o apoio da imprensa e da opinião pública. É uma necessidade dos porões dos órgãos da persecução penal. Foi a espetacularização do processo que permitiu a condenação do ex-presidente Lula, um episódio que desafia o Direito porque significa a própria negação do jurídico por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público. Quando o ministro Gilmar Mendes acusa a Lava Jato de ser uma organização criminosa, ele se refere ao paradoxo de se utilizar métodos ilegais com a justificativa de investigar condutas ilegais. 

A incompreensão do Direito é desconhecimento do modo como os magistrados devem julgar (metodologia jurídica) respaldam várias decisões desse tipo. Se quisermos evitar os justiceiros, o ativismo judicial e a busca do espetáculo, é preciso regressar a 88 e procurar entender a mensagem normativa da Constituição. Também é fundamental voltar à Filosofia Jurídica, à Teoria do Direito e aos livros. A boa doutrina jurídica ainda é a base para a construção do Direito apropriado para cada momento e cada caso. Se houver caminho de volta para a nossa geração, o papel da academia é central no resgate da ordem jurídica e o restabelecimento do Estado Democrático de Direito. Precisamos de uma revolução no mode de compreender e aplicar o Direito”. 

Só um homem com a experiência e sapiência do octogenário Agassiz de Almeida e com vasta formação jurídica, política humanista é capaz de levar-nos à profunda reflexão do quanto o Brasil atravessa uma grave crise existencial, principalmente no que há de mais sagrado na organização do Estado: o Poder Judiciário. Um povo sem Justiça ou com Justiça frágil é um povo fadado ao insucesso, e que assim jamais atingirá o panteão das grandes nações da humanidade. Agassiz Almeida foi promotor, professor universitário e deputado federal constituinte na elaboração da Constituição Federal de 1988.

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