Covid-19 e Caráter da Mudança

Covid-19 e Caráter da Mudança

Com o confinamento familiar em casa, aconselho assistir na CNN Brasil, começando às 21h deste domingo, a programação sobre possíveis cenários pós-pandemia com o escritor e historiador Leandro Karnal, que faz uma análise sobre as relações interpessoais depois do período de isolamento. Iniciada neste sábado, a programação vem mostrando os avanços da ciência e da medicina sobre a cura da doença, bem como os gestos de solidariedade com histórias de superação de quem venceu a enfermidade.

Como a sociedade vai encarar de frente seu futuro?

Karnal alerta para o fato de que há um mês o mundo era um. Hoje, é outro. Ele comparou o processo de mudança com a metáfora do sapo na água quente, que colocado na bacia d’água a tendência ele pular para fora. À medida que ele permanece na água e a temperatura altera substancialmente, sair da bacia não será mais possível. Conclusão: a mudança com o coronavírus impõe sérias reflexões sociais, especialmente no que se refere ao bem-estar de todos.

Para Karnal, “uma epidemia revela nossas desigualdades e nossas escolhas. Se esse é um vírus mundial, nós devemos lembrar que no Brasil temos crianças morrendo de diarreia e isso não é uma questão moral da diarreia. É uma questão moral nossa, que permitimos que uma doença que não é fatal se torne fatal para crianças. O  vírus não é moral. Ele tem lógica, não é religioso, não é vingativo, não está estressado e não diz “vou atacar aquele porque aquele grita muito”. Essa é uma leitura de sentido totalmente não científica. Porém, no momento que ocorre uma doença, ela revela escolhas e essas escolhas são morais. Ou seja, que haja no Brasil gente morrendo por doenças que tem tratamento e gente que não pode fazer isolamento porque vive num espaço apertado em comunidades, isso é moral. E não o vírus. O vírus vai atacar quem estiver com a imunidade baixa e não tomar as medidas claras a esse respeito. Mas as escolhas sociais históricas que fizemos estão revelando algo que, para mim, é o mais trágico dessa epidemia: criamos uma desigualdade tão brutal no Brasil que até a morte é desigual. Há pessoas que não podem fazer quarentena porque não têm dez reais para chegar no dia seguinte e nem comida no refrigerador. Isso é moral e algo para se pensar. Eu não tenho nenhuma raiva do vírus, da bactéria. Tenho raiva da gente. Todos somos culpados pela sociedade que construímos”.

O que esperar para o futuro?

Para o historiador, tudo o que acontece transforma a sociedade. Ele vaticina: “O processo de revolução, o processo de guerra ou o processo de epidemia tem fator de aceleração da história. Nós já estávamos ficando online. Talvez agora vamos descobrir que o trabalho em casa possa ser, por exemplo, mais produtivo. Nós teremos uma revolução educacional a partir da percepção que é possível um home schooling”.

Karnal prossegue: “Outra questão que está sendo testada neste momento é a família. Todo mundo publica no Instagram e no Facebook que família é tudo. “Família é dom de Deus”. “Eu amo minha família”. Chegou o momento da realidade. Já que você amava tanto sua família, tome uma dose cavalar, contínua e diuturna de família. São momentos para eu testar minhas convicções. Para ver se aquilo que eu publicava nas redes sociais era verdade. O mundo sempre será diferente, mas eu sou bastante otimista. Acho que as coisas podem melhorar. Eu vejo, por exemplo, que haverá uma maior valorização da ciência após essa crise. Veja que o SUS, que foi tão criticado no passado, hoje brilha como um exemplo de saúde pública, apesar de todos os seus problemas. Eu vejo que as pessoas entenderam que vida é mais importante do que quase tudo. Se isso vai ser usado para um aprendizado? Eu gostaria que sim. Nós continuamos em transformação contínua. Nunca somos a mesma coisa. Essa crise está mudando a maneira como as pessoas pensam”.

Estou convencido de que não existe país que pense somente na economia. Um país não poderá sobreviver pensando apenas no lucro dos ricos. É desumano um país que insiste em privatizar tudo, sobretudo a saúde pública. Na pandemia nosso SUS está se destacando no mundo inteiro. Muitos querem privatizar. Porém, nas grandes tragédias, nas epidemias e pandemias todos correm para o setor público, onde encontrarão profissionais preparados e medicamentos gratuitos. Nós não devemos mais aceitar um Brasil como se fosse uma cidadela de ricos e de protegidos. Não devemos mais permitir que continue esse plano de economia estúpida dirigida aos mais afortunados, aos banqueiros e aos rentistas.

A lição da pandemia nos impõe uma reflexão sobre a solidariedade. De agora em diante quem não for solidário poderá ser considerado “pária da humanidade”. Há um mês atrás discutir sobre proteção e bem-estar social diante de defensores de “privatizar tudo” era conversa de bar. Agora, conversar com reflexão universal.

A doença me faz aprender muito! Inspirado por Leandro Karnal, não pensei duas vezes em buscar as célebres frases de Dom Hélder Câmara:

1 – “O verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”.

2 – “As pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração”.

3 – “Quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes”.

4 – “Quando olhares em torno e tudo parecer treva, escuridão, fantasma, antes de clamar contra a maldade dos tempos e dos homens examina se estás sendo a luz que deves ser”.

5 – “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.

Historicamente, por absoluta ausência de solidariedade, de amor ao próximo, as pandemias assustaram a humanidade e operaram com extrema devastação social e econômica. Peste negra, cólera, tuberculose, gripe espanhola e AIDS mataram milhões de pessoas em todo o mundo. Agora, pânico do novo coronavírus, que tem causado mortes impiedosas, obrigando o mundo a buscar respostas e explicações, inclusive no plano espiritual.

O vírus impõe um “caráter de mudança” e, por consequência, uma “mudança de caráter”. Somente se mede a ética de alguém no momento de horror. Somente poderemos medir nossa moral diante da tragédia. Ódio, arrogância, vaidade, prepotência, orgulho, desprezo, indiferença, todos sabem, são deformidades do caráter. Portanto, são nas graves crises que as mudanças ocorrerão, para suprir a falta do lado fraterno e do sentimento solidário.

Não há lugar para convivermos mais em um ambiente onde impera o oposto da solidariedade, onde se valoriza mais interesses próprios e onde são expostas manifestações de ganância e exclusividade.

Solidariedade, no mundo espírita, exige sentimento de simpatia, de ternura e de piedade pelos que sofrem com a desproteção estatal por inconcebíveis injustiças. A solidariedade, enfim, significa manifestação de sentimento de conforto e consolo, caracterizando-se pela cooperação ou assistência material e moral mútua.

“Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20: 26-28), enfaticamente Jesus Cristo nos conclama à prática do bem, da ajuda mútua e da assistência recíproca. Alguém é contrário? Claro que não! Porque não há caminho espiritualmente mais correto do que este: palmilhar para o bem-estar sem pensar a quem ajudar.

Nada será mais igual! Por mutáveis, convicto estou de que mudarão os conceitos de felicidade, de prazer, de beleza, de êxito pessoal, do ter e de poder, ... Os cadáveres do vírus estarão aí para nos ensinar, com a saudade para nos maltratar. Restará, então, a esperança. Porque chegou o momento para se pensar em um Brasil de quem e para quem.

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