Forças Armadas e Poder Moderador

Forças Armadas e Poder Moderador

O jurista Ives Gandra Martins, artífice da crise institucional envolvendo a aplicação do art. 142, da Constituição Federal (CF), para que um poder da República possa intervir no outro, tem tentado de todas as formas minimizar a celeuma justificando-se que não fora bem compreendido na argumentação da tese jurídica. Após forte reação do STF, da PGR e da OBA, o novel recuou na tenacidade de induzir muitos a erro jurídico grosseiro.

Há uma verdadeira desinformação quanto à interpretação do referido art. 142. Este não se harmoniza e nem autoriza intervenção das Forças Armadas na República brasileira para garantia da lei e da ordem. Pelo contrário! A intervenção, quando necessária, obedecendo os critérios adotados pela Lei Complementar n. 97/99, somente é permitida para garantir a independência dos poderes, como, por exemplo, para garantir a lei, a ordem e o efetivo cumprimento das decisões judiciais, quando não for possível pelas demais forças de Segurança Pública.

Advogado de prestígio nacional e internacional, Gandra Martins sentiu o “Peso da Toga” quando o STF e a OAB se pronunciaram em desacordo com a tese jurídica defendida por ele, argumentando, por exemplo, que as Forças Armadas não podem servir de “Poder Moderador” para colocar “bastas” em crises institucionais entre poderes.

A tese jurídica de Ives Gandra parece ser uma “encomenda” para que Bolsonaro possa se tornar “interventor”, um “ditador de dinastia” que poderá governar para si, os ministros, a família e os amigos.

Nenhum profissional do Direito seria tão ingênuo para não perceber a intenção do jurista. Qual seja de se instituir pelas Forças Armadas um dissimulado “Poder Moderador”, tendo como espectro uma organização político-civil--militar com mecanismo autoritário e centralizador comandada por Bolsonaro e seus generais-ministros.

Salvo engano, para engendrar a tese, Gandra Martins foi buscar inspiração na Constituição de 1824 para agradar o presidente Bolsonaro e os generais que o acompanham nessa mais nova “aventura político-jurídica” à moda brasileira. Mas, ao que parece, o “tiro poderá sair pela culatra”.

A ideia sugerida aos governistas, ainda que implícita, é de que a concentração de poder nas mãos de Bolsonaro redundaria em diversas atribuições, como governar somente a partir de seus ministros.

Bolsonaro seria uma espécie de “imperador-ditador” enquanto instância máxima detentora de poder, figura inviolável e sagrada em relação aos demais poderes da República, com atribuições para:

- nomear parlamentares, ministros e magistrados;

- a demissão e a suspensão de cargos políticos;

- a concessão de anistias (inclusive para os filhos e amigos envolvidos em crimes);

- a aprovação e a suspensão de todos os conselhos da República;

- a sanção de decretos, de medidas provisórias e de resoluções “ad eternum”;

- a convocação, a prorrogação e o adiamento de Assembleia Constituinte, podendo, inclusive, o Bolsonaro pedir a dissolução quando fosse necessário e aconselhável para a “salvação do Estado brasileiro”.

Na prática, de acordo com a tese de Ives Gandra Martins, tudo seria para salvaguardar Bolsonaro e seus ministros-militares em práticas absolutistas, tendo às mãos deles diversas funções que caberiam somente ao Poder Executivo, ficando os poderes Judiciário e Legislativo subordinados à vontade do “presidente-imperador-ditador”.

Sub-repticiamente, a intenção sempre será para conseguir pela interpretação “capenga” do art. 142, da CF, um “Poder Moderador” ao modo Bolsonaro, disfarçado de “Quarto Poder do Estado”, atribuindo às Forças Armadas poder intervencionista. Teoricamente, garantir-se-ia a estabilidade e a paz no caso de crises institucionais e de atritos graves entre poderes. Como no Império, Bolsonaro, como chefe das Forças Armadas, passaria a acumular funções do Poder Moderador e do Poder Executivo.

Não tenho a menor dúvida de que as Forças Armadas estão por trás de tudo isso. Por quê? Porque o fenômeno é histórico. Porque ao longo do tempo os militares sempre julgaram nossa República incapaz de se autogovernar, sujeita, inclusive, a tutela. Nunca abandonaram essa ideia, hoje revigorada pelo ódio e pelo desprezo aos princípios democráticos.

Como bem avalia a sobriedade do procurador da República e professor de Processo Penal e Direito Penal, Rogério Tadeu Romano, “a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel. Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais tendo poder de intervir. Ora, isso não se amolda à Constitução-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia”.

Por fim, merece destaque a passagem lúcida e oportuna do parecer jurídico da OAB: "A Constituição Federal não confere às Forças Armadas a atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais, mas demanda sua mais absoluta deferência perante toda a Constituição Federal, o que inequivocamente perpassa o princípio da separação dos poderes. Ademais, falar em um “Poder Moderador” exercido pelas Forças Armadas não apenas é demonstração de uma hermenêutica jurídica enviesada, como também é um argumento sem qualquer lastro histórico".

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