Preventiva, Juízo de Valor e Nulidade
Preventiva, Juízo de Valor e Nulidade
Decreto de Prisão Preventiva não pode se transformar em antecipação da tutela penal ou em execução provisória da pena.
Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF): “A Prisão Preventiva – Enquanto medida de natureza cautelar – Não tem por objetivo infligir punição antecipada ao indiciado ou ao réu. - A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.” (RTJ 180/262-264, Rel. Min. Celso de Mello)
É comum para o profissional do Direito enfrentar preventivas fundadas - ainda que de forma superficial - em juízo de valor, adentrando ao mérito do processo-crime para trancafiar alguém. Reiteradamente, o STF tem dito que isso revela absoluta inconstitucionalidade, com fins punitivos, prisão cautelar que se destina a punir alguém ofendendo as garantias constitucionais do devido processo legal, com a consequente supressão da liberdade, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação antecipada.
Juízo de Valor
A prisão preventiva que faz “juízo de valor” sobre o mérito do crime abandona os princípios fundamentais que norteiam o devido processo legal, enveredando pelo sensacionalismo, combustível natural para o “clamor público”. A preventiva que se assenta apenas na “garantia da ordem pública” alimenta o sentimento popular e não jurídico da impunidade e da insegurança na sociedade.
A opinião pública, como o diz o professor de Direito Penal da PUC/MG, Leonardo Isaac Yarochewsky, “geralmente influenciada pelos meios de comunicação, deseja a imediata prisão do suspeito numa espécie de vingança coletiva”, hipótese em que a prisão perde seu caráter de cautelariedade e se converte em antecipação de pena. A influência maléfica da mídia em processos penais de repercussão, que se transformam em verdadeiros espetáculos, é notória.
A prisão preventiva tem apenas o caráter cautelar e excepcional. Não pode demudar-se ou desnudar-se em antecipação de condenação. Nem se confundir com a prisão penal (após condenação transitada em julgado). E não pode ser decretada com fins de evitar impunidade.
É importante insistir na questão. No Judiciário, no campo jurisdicional penal, um juízo de valor é um juízo sobre a correação ou incorreção de alguém que já foi ou ainda vai ser julgado. Genericamente, reporta-se a um julgamento baseado num conjunto particular de valores ou num sistema de valores determinado, com reflexos numa sentença futura e não no instante da prisão cautelar.
É defeso (proibido) ao juiz que decretar a prisão preventiva fazer juízo valorativo sobre o mérito da suposta ação criminosa, objeto ainda de investigação ou de apuração na instrução criminal. Detectado o juízo de valor, que induz, inclusive, prejulgamento, a preventiva é nula.
No Direito Processual Penal o juízo de valor pode ser usado em duplo sentido. Porém, apenas quando concluída a instrução criminal. Positivamente, deve ser feito levando em conta um sistema de valores. Negativamente, um julgamento feito de um ponto de vista pessoal, em vez de um pensamento racional, objetivo e de acordo com as provas colimadas para o processo-crime.
Assim, a prisão preventiva não avalia valores. Avalia requisitos. O juízo de valor pessoal do juiz na prisão cautelar, seja ela qual for, denota parcialidade, no mínimo ausência de independência, contaminando o processo penal. A preventiva avalia “valor neutro”, de independência. Não sendo valor nem bom nem mau, nem útil nem inútil, nem significativo nem trivial. Isso porque o papel de acusar, conforme o sistema penal brasileiro, incumbe ao Ministério Público, não ao magistrado.
E mais. Juiz não pode fazer juízo de valor depreciativo ou não ao Ministério Público. E nem a nenhuma das partes envolvidas no processo-crime, seja vítima ou réu. Isso desconfigura o decreto preventivo, que não pode substituir-se à sentença penal a ser prolatada “a posterori”.
Tecer considerações se determinado delegado fez ou faria melhor avaliação que o Ministério Público sobre investigação criminal, refoge aos requisitos e parâmetros pertinentes aos fundamentos da custódia preventiva, que não se presta à análise penal, mas processual.
Portanto, preventiva não pode substituir-se a condenação. Uma situação é processual, sem exame de mérito; a outra, penal, com julgamento de mérito. A preventiva é condicionada ao preenchimento dos requisitos do art. 312, do Código de Processo Penal. Portanto, não existindo ofensa à garantia da ordem pública, da ordem econômica, ou necessidade por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicabilidade da lei penal, não há o que se falar em decretação de prisão preventiva. Assim a possibilidade da prisão do agente não pode, “data vênia”, ser considerada uma sanção extrapenal.
Argumentando, o Direito Processual Penal não relativiza a liberdade. Aliás, a liberdade é regra; a exceção é a prisão. Portanto, é nula a prisão que, para justificar acautelamento, faz juízo de valor pessoal acerca das circunstâncias da infração e do infrator, tarefa afeita ao órgão do Ministério Público nas ações penais públicas.
Ainda a título de argumentação, o juízo de valor somente é tolerado no processo cível. Mesmo assim com limitações. Porque existem alguns momentos deste, anteriores à sentença, a possibilidade de o juiz decidir liminarmente parte da controvérsia, com a possibilidade de modificação de sua decisão a qualquer tempo, a requerimento da parte ou de ofício.
Um desses momento no processo cível se refere às tutelas de urgência, as chamadas antecipações de tutela, pelas quais a parte deseja o adiantamento dos efeitos do provimento jurisdicional final. Neste caso, o magistrado emitirá juízo de valor sobre as questões controvertidas, advertindo as partes, porém, que tal se dá somente para viabilizar a apreciação do pedido de antecipação de tutela e, assim, uma vez exercido o direito à ampla defesa e à produção de provas, a sentença final poderá expressar outro entendimento sobre a matéria, mormente porque é da essência deste tipo de tutela de urgência a temporariedade, como bem avalia o acurado magistério de Mauro Vasni Paroski, juiz, Especialista e Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina/PR e Doutor em Direitos Sociais na Universidad de Castilla-La Mancha da ESPANHA.
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Nulidade Penal
Para arrematar, inquestionavelmente, há vício na prisão preventiva decretada em procedimento criminal de Ação Pública que exija a participação obrigatória do Ministério Público, nos precisos termos do art. 564, do CPP, “verbis”:
Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
(...)
III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
(...)
d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública;
IV – por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.
Com a prevalência dos enfoques legais citados, Fernando Capez leciona que a “nulidade é um vício processual decorrente da inobservância de exigências legais capaz de invalidar o processo no todo ou em parte. José Frederico Marques, por sua vez, diz que “a nulidade é uma sanção que, no processo penal, atinge a instância ou o ato processual ou o ato processual que não estejam de acordo com as condições de validade impostas pelo Direito objetivo”. E Júlio Fabbrini Mirabete arremata dizendo que “há na nulidade duplo significado: um indicando o motivo que torna o ato imperfeito; outro que deriva da imperfeição jurídica do ato ou sua inviabilidade jurídica”.
Multa Civil – Incompatibilidade
Repita-se: decreto de prisão cautelar preventiva não é sentença penal condenatória. O juízo de piso, ao decretar a prisão cautelar, fica restrito apenas à demonstração da necessidade de manter a ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a aplicação da lei penal. Pronto! Toda outra questão ventilada somente é afeita à sentença. A imposição de prisão que envereda por outros caminhos, fica eivada de nulidade.
Uma multa civil inserida na prisão preventiva, alheia aos requisitos legais, caracteriza “excesso de cautela”. No processo-crime, a única sanção possível seria a do art. 22, § 4º, da Lei Maria da Penha, ou seja, que possibilita ao juiz determinar a aplicação de multa civil em virtude de descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Subsidiariamente, aplica-se o art. 537, do Novo Código de Processo Civil, ou seja, para o caso de descumprimento de medida protetiva, autorizando o juiz fixar providência com o objetivo de alcançar a tutela específica da obrigação. Não é o caso do jornalista Arimatéia Azevedo.
A sanção por descumprimento de medida cautelar deve se afastar da repercussão penal. Dado ser exclusivamente de natureza civil. As instâncias cíveis e criminais são independentes. Porém, a conexão entre as instâncias somente poderá ser feita quando da sentença penal, não no momento da prisão preventiva. O indivíduo pode ser absolvido em uma instância e ser condenada em outra, pois, em regra, as instâncias de responsabilidade são independentes. Trata-se do princípio da independência das instâncias.
No caso do crime de extorsão, por exemplo, a multa penal vem prescrita no próprio dispositivo do art. 158, do CP. Uma multa civil em prisão preventiva vulnera o princípio do “non bis in idem” (limite ao poder punitivo do Estado), que contém dois significados: de um lado, o material, que impede que uma pessoa seja punida duas vezes pelo mesmo fato (ou infração); de outro, funciona como garantia processual, impedindo que um mesmo fato possa ser objeto de dois processos distintos. O ilícito penal e o civil têm natureza, reflexo e substância diferentes entre si. O penal é comando de proteção geral da sociedade; o civil quando se tratar de reparação patrimonial personalizada.
De se ressaltar que, no Brasil, embora não possua uma previsão constitucional expressa, o princípio reportado é reconhecido de duas formas: por meio do art. 8º, item 4, do Pacto de São José da Costa Rica, o qual tem status supralegal no nosso país, conforme já assentou o STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 4663434; e de forma implícita, como decorrência de outros direitos fundamentais catalogados pela Constituição Federal, tais como os princípios da proporcionalidade, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. O “non bis in idem” impede que uma conduta seja tipificada de forma simultânea em várias normas, traduzindo-se na proibição da aplicação conjunta de tais normas a uma determinada conduta.
Conclusão
Em síntese, a prisão preventiva não é sanção penal. O caso do jornalista além de ser “sui generis”, nos aspectos legais aqui enfocados, sugere pensar que a prisão preventiva dele deixou de ser medida cautelar e passou a ser pena ou sanção, extrapolando seus fundamentos. Prisão preventiva não pode ter fins punitivos.
Da lavra do jurista Eugênio Pacelli colhe-se o entendimento de que a presença dos pressupostos da prisão preventiva é condição necessária, mas não suficientes para sua decretação. Deverão estar presentes, ainda, as hipóteses de cabimento que definem quais circunstâncias e crimes é possível o cerceamento da liberdade de alguém, objetivando impedir que a medida deferida seja mais grave e mais intensa que a pena a ser aplicada no final do processo-crime. Assim, prisão que constrói hipótese abstrata macula, vulnera, inclusive, os princípios fundamentais da dignidade e da lealdade processual.