Caso Arimatéia – Estado de Perigo

Caso Arimatéia – Estado de Perigo

O caso do jornalista Arimatéia Azevedo tem despertado a atenção da classe jurídica piauiense. Sua prisão, pela gravidade e pelas cautelas impostas, com as premissas do art. 312, do Código de Processo Penal (CPP), exige do intérprete e do operador do Direito um exame bem mais aprofundado e acurado de questões estritamente de direito, com a responsabilidade que o caso requer e o respeito às autoridades.

O DIREITO

Com o advento da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a chamada “Lei do Pacote Anticrime”, introduziu-se substancial modificação ao art. 312, do CPP, pertinente aos requisitos para a decretação da prisão preventiva, uma das medidas cautelares limitadores do direito à liberdade de ir e vir.

Antes, quatro eram os requisitos para justificar a prisão preventiva, a saber: garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; por conveniência da instrução criminal; e/ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Com a alteração, além da prova da existência do crime e de indício suficiente de autoria, impôs-se imperativamente ao juiz o poder/dever de demonstrar e justificar o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, para fins de decretação da prisão preventiva.

A LEI PROCESSUAL PENAL

Veja a redação anterior do art. 312, do CPP

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Veja a redação atual do art. 312, do CPP:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

Observe que é uma reforma sutil. Porém, profunda, inegavelmente! A nova redação inclui mais um requisito obrigatório para se fundamentar e justificar a decretação da prisão preventiva: “... de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Qual o objetivo de se acrescer mais um requisito ao dispositivo? Evitar a banalização da prisão preventiva e proibir sua decretação com a finalidade de condenação futura ou como consequência imediata para anuir, consolidar, fincar, legitimar ou convalidar investigação criminal desnuda de segurança jurídica e das cautelas legais.

RELEVÂNCIA CONSTITUCIONAL

A partir da alteração a decretação da prisão preventiva passou a exigir uma fundamentação muito maior e mais complexa. Inclusive de relevância constitucional. Como bem avaliado pelo jurista Carlos Eduardo Rios Amaral, “o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado retira por completo o caráter de estado automático e presumido de perigo ou de risco para o processo gerado apenas pela presença das tradicionais quatro hipóteses da decretação da prisão preventiva”. 

Como de relevância, primeiro, porque o requisito deriva de uma norma imperativa, cogente, racionalmente necessário para extirpar o arbítrio; segundo, porque diz respeito ao “jus libertatis”, como um dos pilares da dignidade da pessoa humana. Com a inovação, ao contrário de antes, não poderá o juiz olvidar o novo requisito, qual seja do “estado de perigo”. Com isso, eliminou-se a presunção automática de “estado de perigo” gerado somente pela prova da existência do crime e de indício suficiente de autoria.

Agora, a situação de perigo ocasionada pela liberdade do investigado/indiciado/acusado deve ser calcada em fatos novos e contemporâneos. Impõe-se ao decreto de prisão preventiva o dever/obrigação de demonstrar e comprovar com fatos que a liberdade do imputado possa ensejar “estado de perigo”, sob pena da decisão que decretou a prisão ser omissa e, por conseguinte, nula “pleno jure”.

Segundo o jurista citado, o mesmo raciocínio aplica-se às hipóteses de decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem econômica e por conveniência da instrução criminal, para garantir a aplicação da lei penal, devendo ficar demonstrado o “estado de perigo” gerado pela liberdade de quem possa suportar os efeitos da custódia preventiva.

A modificação ao CPP, com relação às medidas cautelares penais de segregação ou limitação do direito de ir e vir, privilegiou a proteção à liberdade da pessoa, com exceção dos crimes dolosos perpetrados contra a vida humana.

CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

Hoje, forçosamente, para se decretar a prisão preventiva impõe-se a obrigatoriedade e a necessidade de atentar-se para os conceitos que antes estavam presentes somente na jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ou seja:

a) contemporaneidade do risco processual decorrente de atos realizados pelo investigado/indiciado/acusado;

b) impossibilidade de antecipação de pena criminal;

c) direito subjetivo do investigado/indiciado/acusado à aplicação das cautelares alternativas previstas no art. 319, do CPP, quais sejam as medidas cautelares diversas da prisão.

Em consonância com a reforma implementada pela “Lei do Pacote Anticrime”, os conceitos de “medidas alternativas” passaram a ser a regra e a prisão a exceção, seja ela qual for.

Com o novo requisito para fundamentar e justificar a cautelar da preventiva, quer-se evitar a possibilidade de que a prisão seja usada de forma autoritária e arbitrária como antecipação de pena, de coação ao autor da infração.

Outra modificação importante foi implementada no art. 282, § 6º, do CPP, para evidenciar o direito subjetivo do investigado/indiciado/acusado de responder ao processo em liberdade - ou mesmo fiscalizado -, quando presentes, cumulativamente, os requisitos da adequação e da suficiência para a aplicação das cautelares alternativas previstas no art. 319, do CPP.

Portanto, não há mais que se falar em oportunidade e em legalidade da preventiva quando presentes os pressupostos de materialidade e de indício, de hipótese de cabimento da prisão, quando ausentes, ineficientes e inexistentes os fundamentos sopesados no “estado de perigo” que poderá causar a liberdade de alguém que cometeu ou supostamente tenha praticado um delito em investigação.

Não bastam, pois, presunções, ilações e meras conjecturas. De forma alguma! Necessariamente, deve-se apontar no processo-crime instaurado - seja na investigação ou instrução - todos os elementos concretos de “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, para que possa ensejar a prisão preventiva. “O perigo gerado pelo estado de liberdade do paciente deve ser real, com suporte fático probatório suficiente para legitimar tão gravosa medida” (Aury Lopes Jr.).

JULGADOS

Então, o caso Arimatéia brada: “A prisão preventiva exige, além do alto grau de probabilidade da materialidade e da autoria (fumus commissi delicti), a indicação concreta da situação de perigo gerada pelo estado de liberdade do imputado (periculum libertatis) e a efetiva demonstração de que essa situação de risco somente poderá ser evitada com a máxima compressão da liberdade do imputado. Constitui manifesto constrangimento ilegal a decretação da prisão preventiva com base na mera gravidade da imputação, sem a indicação concreta dos pressupostos fáticos que autorizam a conclusão de que o imputado, em liberdade, criará riscos para os meios ou o resultado do processo” (Supremo Tribunal Federal - HABEAS CORPUS nº 122.057 - SÃO PAULO).

No julgado do Habeas Corpus nº 169.119, no STF, o ministro Celso de Mello foi enfático ao admitir que nenhuma pessoa pode ser mantida presa sem que exista uma razão legítima que o justifique. “É preciso que os requisitos da prisão cautelar tenham reflexo e suporte legitimador em fatos reais, em base factual concreta, em base empírica idônea, sob pena de o ato de decretação cautelar tornar-se um exercício inaceitável de puro arbítrio”.

Observe-se, pois, os núcleos jurídicos trazidos à colação pelo ministro: “reflexo e suporte limitador”; “base factual concreta”; e “base empírica idônea”. Por hermenêutica, diz-se que não basta para a decretação de uma prisão preventiva o fundamento em apenas um ou dois, mas nos três núcleos cumulativamente e em consonância com o processo-crime, sem as indesejáveis ilações e conjecturas extraídas de mera convicção.

CONCLUSÃO

Arremate-se, na oportunidade, que não basta mais ao intérprete e ao operador do Direito perquirir sobre a existência do crime e de indícios suficientes de autoria. Não! Agora, examinar-se-á - por império da lei - o “status libertatis” do investigado/indiciado/acusado que possa gerar perigo para a vítima e, por via reflexa, para a sociedade. No perigo gerado pelo estado de liberdade o que se examinará é se a manutenção da liberdade por si só coloca em perigo a “vítima imediata” e, em última análise, o “habitat” social. Essa distinção não existia anteriormente à reforma da Lei Anticrime. Somente pela via doutrinária e jurisprudencial. Hoje, é imposição legal aferir-se a eficácia e a harmonização do novo texto legal com a decisão que decretar a prisão, sob pena de nulidade desta em decorrência de carência de fundamentação e por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.

É imperioso destacar que, hoje, com a reforma introduzida na lei, no universo jurídico nacional a “quaestio juris” é tratada como a “Nova Prisão Preventiva”. Inovação que tem como espoco buscar uma conformação do Código de Processo Penal com a Constituição Federal, salvaguardando o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, afastando a possibilidade da custódia humana funcionar como execução provisória de pena, em ofensa ao postulado do “nulla poena sine culpa”, de que não há pena sem crime, sustentado no princípio da legalidade penal e na limitação do poder punitivo do Estado, escudo de proteção do cidadão.

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