Nulidade do Inquérito Policial

Nulidade do Inquérito Policial

"O inquérito policial, em síntese, é mero procedimento informativo e não ato de jurisdição e, assim, os vícios nele acaso existentes não afetam a ação penal a que deu origem. A desobediência a formalidades legais pode acarretar, porém, a ineficácia do ato em si (prisão em flagrante, confissão, etc.). Além disso, eventuais irregularidades podem e devem diminuir o valor dos atos a que se refiram e, em certas circunstâncias, do procedimento inquisitorial considerado globalmente" (in Júlio Fabbrini Mirabete, em “Código de Processo Penal Interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial” - 2ª Ed - São Paulo - Atlas).

Para que possamos focar sobre a nulidade ou anulabilidade do inquérito policial, três questões de direito trazidas por Mirabete merecem destaque:

1) “desobediência a formalidades legais no inquérito”;

2) “ineficácia do inquérito”;

3) “irregularidades que podem e devem diminuir o valor do inquérito como ato administrativo”.

Os anais do Judiciário brasileiro estão repletos de inquéritos policiais eivados de vícios e de irregularidades verificadas no decorrer de investigações, que acabaram contaminando ações penais das mais diversificadas e dos mais variados crimes, maculando a acusação.

Inquestionavelmente, o inquérito policial é peça meramente informativa. Máculas ocorridas nele não contaminam, em tese, a ação penal. Também em tese, vícios ocorridos na investigação policial não se transmudam automaticamente para o processo-crime. Esse raciocínio, segundo a melhor doutrina, baseia-se no fato de o inquérito policial consiste em procedimento informativo sem incidência dos postulados do contraditório e da ampla defesa.

Porém, os vícios, as máculas e os defeitos do inquérito – quando do momento da denúncia – podem, sim, contaminar e afetar a substância do ato, ensejando, quando for o caso, a decretação de nulidade ou de anulabilidade, como sanção aplicável a qualquer ato administrativo/jurídico defeituoso, que não se perfez obedecendo os princípios de validade e de legalidade.

A desobediência a formalidades legais pode acarretar a ineficácia do ato em si, como, por exemplo, tornar nula a prisão em flagrante e, em outra hipótese, contaminar as prisões cautelares. Irregularidades e vícios, por fim, diminuem o valor probante em juízo, afetando consideravelmente o exame do mérito da ação penal.

Devemos tratar a questão do inquérito policial sob a ótica do próprio Código de Processo Penal (PCC), ao concebê-lo como um conjunto de atos praticados pela função estatal com escopo para apurar a autoria e a materialidade da infração penal. Fernando Capez tem a posição de que o inquérito policial “é o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo".

Assim reza o art. 4º, do CPP:

"Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria".

Assim, o inquérito policial tem como principal objetivo a busca de indícios de autoria e de materialidade, a fim de que seja, então, remetido ao órgão do Ministério Público para que promova ou não a denúncia.

Filio-me à corrente jurídica de que o valor do inquérito, em determinados casos, evidentemente, será imprescindível para a ação penal. Portanto, não é um instrumento dispensável em via de regra. Veja, primeiro, o que preceitua o ar. 12, do CPP: "O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra". Deduz-se, daí, que o inquérito não é indispensável para o oferecimento da denúncia ou da queixa. Segundo, veja os arts. 39, § 5º e 46, § 1º, do diploma legal citado, normatizando que o órgão do Ministério Público pode dispensar o inquérito. Correto! Mas, há a imposição de que o titular da ação penal somente o dispensará quando dispor de elementos e documentos necessários para o oferecimento da denúncia ou referendar a representação.

Fernando da Costa Tourinho, em “Processo Penal”, 10ª ed., São Paulo, vol. I, p. 163, esclarece: "(...) o inquérito visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. (...) Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autoria do fato infringente da norma, porquanto, não se sabendo quem o teria cometido, não se poderá promover a ação penal".

Constitucionalmente, as principais características do inquérito policial são: (a) procedimento escrito, (b) sigiloso, (c) oficialidade, (d) oficiosidade, (e) autoritariedade, (f) indisponibilidade e (g) inquisitivo.

Pouco se discute sobre a mais relevante das funções do inquérito policial: “evitar a realização de acusações infundadas”. Significa dizer que uma investigação/acusação não pode enveredar pelo caminho tortuoso da incerteza e da leviandade, desgarrada da busca pela verdade real.

A lei dispõe que o inquérito somente subsiste quando há o conhecimento da prática de uma infração criminal. Com exceção da prisão em flagrante, por “notícia-crime”, de conhecimento próprio ou por provocação, o primeiro ato do delegado de polícia é baixar uma portaria para iniciar a investigação e, consequentemente, acionar o inquérito policial.

Destaque-se que o ato que instaura o inquérito policial é emanado, por delegação, do Poder Executivo, representado pela Polícia Judiciária, que obedece a forma do Código de Processo Penal e da Constituição Federal, ato administrativo, inclusive, chancelado “a posteriori” pelo Poder Judiciário, até prova em contrário que o considere nulo ou anulável.

Portanto, o inquérito policial viciado, contaminado, acaba contribuindo para o insucesso da ação penal. E esta restará prejudicada se o procedimento investigativo for nulo, anulado, se os indícios não se prestarem para ensejar provas no decorrer da instrução criminal, imperando nos vícios detectados a teoria dos frutos da árvore podre ou envenenada.

Com efeito, a denúncia não supera os vícios verificados no inquérito policial. E não exaure sua função acusatória se a peça policial for viciada.

Veja que o Ministério Público somente por uma hipótese pode oferecer denúncia dispensando o inquérito policial: se a notícia-crime se apresentar com todas as provas e documentos que façam presumir a materialidade e a autoria do crime. Portanto, a contaminação do inquérito pode, sim, inviabilizar a acusação e, por consequência, nulificar ou anular a ação penal por inviabilidade jurídica “a posteriori”.

A nulidade ou anulação do inquérito insere-se na hipótese da inobservância de exigências ou de formalidades legais em que o ato administrativo/jurídico é destituído de validade, maculado na origem. Ocorrendo eventual vício na fase inquisitorial, estará a ação penal comprometida e contaminada, salvo se por outros meios a denúncia possa ser oferecida e instaurada, como já dito.

A ausência do cumprimento dos princípios constitucionais durante a investigação, no transcorrer do inquérito policial, traz prejuízos à aplicação da lei e da Justiça Penal. O inquérito policial, como tal, insere-se dentro do processo penal-constitucional-garantista como ato administrativo puro e não precário. E sua nulidade ou anulabilidade por vícios de forma ou de conteúdo - ainda que não possa inviabilizar uma ação penal - contamina fortemente a acusação do Ministério Público.

Não pode o delegado de polícia agir fora dos parâmetros legais. Não! Com seu vaticínio, o ministro Celso de Melo, do STF (HC 84548/SP), diz que “o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”. Assim, para os professores de Direito Raphael Zanon e Rodolfo Luiz Decarli, “não se mostra razoável, tampouco justificável, que atos de Polícia Judiciária sejam praticados após a ocorrência de ilegalidades, sob pena de retornarmos a um antigo Estado policialesco, totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito conquistado com a promulgação da Constituição Federal vigente”.

“A natureza administrativa do inquérito policial não o blinda contra as garantias processuais próprias do sistema processual penal constitucional brasileiro. (...) A não transmissibilidade de um vício do plano administrativo ao judicial (...) significaria que haveria um nível de proteção de direitos fundamentais diferente conforme se trate de um e outro plano jurídicos (...). A alusão de que o inquérito policial não se subsume ao controle de legalidade equivale a uma declaração de presunção absoluta de sua regularidade. (,...) Imunizar esse ato contra qualquer declaração de invalidade é blindá-lo contra o exame de legalidade. Assim, o magistrado utilizaria os autos da investigação em sua sentença como elemento de motivação, mas paralelamente o acusado não poderia alegar sua invalidade” (in Aury Lopes Jr e Ricardo Jacobsen Gloeckner, em “Investigação preliminar no processo penal - São Paulo - Saraiva - p. 338-343).

“Não há como aceitar a versão que não admite vícios no Inquérito Policial, visto que a formalidade dos atos existem (eis o CPP, artigo 4º a 23) e a forma, como visto, mormente na esfera criminal, é garantia do cidadão perante os atos do Estado (in Érica de Oliveira Hartmann, em “Nulidade no Inquérito Policial – reconhecimento e consequências” - Raízes Jurídicas – Curitiba - p. 296).

Por fim, socorro-me das conclusões do mestre Henrique Hoffmann Monteiro de Castro, Professor da Escola da Magistratura e da Escola do Ministério Público do Paraná, para o qual “vale ressaltar que, em que pese ser importante a observância da tipicidade dos atos investigativos, obviamente não é um fim em si mesmo. O reconhecimento de nulidades no inquérito policial deve ser feito “cum grano salis” (com um grão de sal), impedindo o formalismo estéril e o desvirtuamento da finalidade da investigação criminal, qual seja, servir como instrumento para a aplicação do direito penal. Se de um lado não se pode admitir um amorfismo que abandone a máxima da persecução penal de que forma é garantia, de outro norte é preciso evitar que a investigação criminal seja campo fértil para chicanas jurídicas”.

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