Inquérito e Investigação Viciada

Inquérito e Investigação Viciada

Nesta quarta-feira (17), o Supremo Tribunal Federal (STF) prosseguiu com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 572, em que se discute a validade da portaria da Presidência da Corte que determinou a instauração do Inquérito (INQ nº 4781), a fim de investigar notícias falsas (fake news) e outros crimes graves que atingem o tribunal, seus ministros e familiares destes.

Em seu voto pela validade do procedimento, o ministro Alexandre de Moraes teceu argumentos jurídicos sobre a diferença entre “Investigação Penal” e “Ação Penal”. A Constituição Federal, segundo o ministro, concede ao Ministério Público (art. 129, inciso I) a competência privativa para promover Ação Penal Pública. Porém, não lhe concede a primazia para a “Investigação Penal”. E afirma: “Uma coisa é o sistema acusatório, a titularidade da Ação Penal Pública. Outra coisa é a Investigação Penal. Querer conceder a apenas um órgão a possibilidade de iniciar investigações de forma privativa é um absurdo”.

Muitos confundem “Investigação Penal” com “Ação Penal”. Basta dizer que, hoje, no âmbito moderno do Direito, a “Investigação Defensiva” (inserida pela doutrina e pela jurisprudência na investigação) acrescenta ao Inquérito Policial maior participação e contribuição da defesa em prol das garantias constitucionais do investigado/indiciado, para fincar a paridade de armas entre defesa e acusação. Significa dizer que, na busca da verdade real, a “Investigação Penal” não se insere apenas no campo de “exclusividade” ao Ministério Público.

Antes do brilhante voto do ministro, a participação do investigado/acusado na construção da verdade durante a investigação e na instrução processual já tinha sido objeto de apreciação no STF, quando do julgamento da ADIn n° 5104 MC/DF.

“E qual seria o interesse da defesa em participar da fase investigatória? Este momento pré-processual, como já ressaltado anteriormente, serve como suporte material para a formação do convencimento do Ministério Público sobre a ocorrência ou não de determinado crime. A participação da defesa neste momento pode ocasionar uma melhor observação dos fatos analisados por parte do MP, um “olhar com os olhos do investigado” (Daniel Lima, Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais e Especialista em Direito Penal e Processo Penal).

Pelo magistério de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, em “Princípios Fundamentais do Processo Penal”, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 11, colhe-se o entendimento de que, respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer pessoa sob investigação do Estado frente à Justiça Penal, “dá à defesa a faculdade de dissipar as suspeitas, de combater os indícios, de explicar os fatos e de destruir a prevenção no nascedouro; propicia-lhe meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a escandalosa publicidade do julgamento”.

Para o professor de Direito Henrique Hoffmann, a investigação que violar as garantias do investigado, seja do seu direito de ser ouvido, seja do direito ao silêncio, do direito à informação, ou, ainda, de qualquer outra garantia, não poderá constituir justa causa válida para estear a Ação Penal.

Pouco se discute a “Investigação Defensiva”. Procedimento no Direito Criminal que enfrenta a “disparidade de armas” entre acusação e defesa. Sua ignorância, por conseguinte, demonstra absoluto desconhecimento do atual Direito Penal brasileiro aprimorado.

“Não obstante, a circunstância de inexistir, até o presente momento, regulamentação da investigação defensiva (senão um projeto de lei), não significa que este procedimento seja vedado, ao contrário: por força do princípio da legalidade, bem como dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa, deve-se admitir a investigação criminal defensiva, afinal, se não é proibida expressamente e, de outro lado, encontra amparo nos direitos de defesa, estampados constitucionalmente (art. 5º, LV , da CF), há de ser admitida” (Tatiane Imai Zinardi, Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 191-216, jan./jun. 2016).

Investigação Viciada

Estatísticas judiciárias registram que a “prova” (entre aspas, claro!) que mais condena no processo penal brasileiro é a produzida na fase de investigação. Infelizmente, seja ela viciada ou não. Por quê? Porque se ignora (no sentido “lato sensu” de se tolerar injustiça) o direito a uma “Investigação Defensiva” sob a ótica do Estado de Direito.

Todo intérprete, todo operador do Direito Penal tem quase que por obrigação conhecer a obra “As Misérias do Processo Penal”, do gênio italiano Francesco Carnelutti, incansável jurista defensor dos direitos humanos e de todos os acusados, autor da célebre frase: “A lei é igual para todos. Também a chuva molha todos, mas quem tem guarda-chuva abriga-se”.

Exímio defensor, produziu a seguinte pérola: "As pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação, o que não é verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é verdade. As pessoas pensam que prisão perpétua é a única pena que se estende por toda a vida: eis uma outra ilusão. Senão sempre, nove em cada dez vezes a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens não".

Pelas reflexões contidas na obra pode-se ter a noção das mazelas e das complexidades de uma investigação criminal e do consequente processo-crime, como atuam os policiais, os membros do Ministério Público, os magistrados e os advogados. Compreender com maior amplitude o papel da defesa dos direitos e garantias fundamentais na busca de um julgamento justo e imparcial.

Carnelutti é importante inclusive para os dias atuais. Suas críticas ao sistema processual penal em sua totalidade demonstram a perplexidade criminal quanto à investigação e à persecução penal parcial, direcionada. Ressalta a necessidade do investigado e do acusado contribuir com a exposição dos acontecimentos na fase investigativa e na fase processual de sumário propriamente dita.

Toda investigação policial não é uma afirmação. Não! Como fase pré-processual do Direito Penal serve, primeiro, para formar juízo de probabilidade. De certeza. E exige, acima de tudo, estrita observância das disposições legais, máxime quanto aos direitos dos investigados.

É importante deixar assentado que, à consideração de festejados juristas nacionais e estrangeiros, a investigação não produz somente elementos de informações, de indícios, de convicções. Não! Também provas. Portanto, é intolerável uma “investigação viciada”, maculada, potencializada pela intencionalidade dirigida para impingir ou isentar.

No exame da questão, oportuna é a prescrição da Súmula Vinculada nº 14, do STF: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

“Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. (...) Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício. (...) 5. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade dos investigados (...) não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais investigados, para impedir o acesso aos autos, importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito a seu constituinte” (HC 88.190, voto do rel. min. Cezar Peluso, 2ª T, j. 29-8-2006, DJ de 6-10-2006).

“O direito do investigado de ter acesso aos autos não compreende diligências em andamento, na exata dicção da Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal. (...) 6. O Supremo Tribunal Federal assentou a essencialidade do acesso por parte do investigado aos elementos probatórios formalmente documentados no inquérito – ou procedimento investigativo similar - para o exercício do direito de defesa, ainda que o feito seja classificado como sigiloso. Precedentes. 7. Nesse contexto, independentemente das circunstâncias expostas pela autoridade reclamada, é legitimo o direito de o agravante ter acesso aos elementos de prova devidamente documentados nos autos do procedimento em que é investigado e que lhe digam respeito, ressalvadas apenas e tão somente as diligências em curso” (Rcl 28.903 AgR, rel. min. Edson Fachin, red. p/ o ac. min. Dias Toffoli, 2ª T, j. 23-3-2018, DJE 123 de 21-6-2018).

O constitucionalista José Afonso da Silva ensina que o devido processo legal está baseado em três princípios: “acesso à justiça; contraditório; e plenitude de defesa”. Verdadeiros pilares do Estado Democrático de Direito. A defesa, segundo Ada Pellegrini Grinover, mais que um direito constitui uma garantia: “garantia do acusado” e “garantia do justo processo”. Como condição de regularidade do procedimento, constitui uma garantia na ótica do interesse público.

Para o professor de Direito Penal Leonardo Isaac Yarochewsky, alguns magistrados com sangue nos olhos e em nome da fúria punitiva vêm atropelando o sagrado princípio constitucional da ampla defesa sem qualquer parcimônia. Diz que a busca sistemática, incansável e esmagadora pela punição em nome da repressão penal e de uma fantasmagórica contenção da criminalidade, por mais difundida e alardeada que seja, não pode contaminar os princípios fundamentais e garantistas do Direito Penal e do Processual Penal. E, muito menos, conspurcar a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

A coação e a “montagem” de depoimentos e declarações inexistentes ou “fabricadas” a corréus para acusar outro ou outros investigados são comuns em “investigações viciadas”, que alguns juristas chamam de “dirigidas”. Típicas para engendrar coações morais irresistíveis que culminam, no futuro, em condenações criminais, como ocorreu não faz muito tempo com alguns processos derivados da Operação Lava Jato, eivados de vícios procedimentais para obter confissões quiméricas.

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