Crime e Indispensabilidade da Perícia

Crime e Indispensabilidade da Perícia

Ainda que equivocadamente, há quem defenda que seria dispensável o exame de corpo de delito ou a perícia quando se tratar de crime formal. Logo, o exame somente seria indispensável para os crimes materiais. O art. 158, do Código de Processo Penal (CPP), tem a seguinte redação: “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

Pela redação, observa-se, induvidosamente, que o texto legal não faz qualquer distinção entre crime formal e material para ditar a regra imperativa e obrigatória da feitura do exame pericial nas infrações penais que deixam vestígios.

Na discussão, necessário distinguir crime formal, material e de mera conduta. O formal se consuma independentemente da existência de um resultado, ainda que este venha a acontecer. O material se caracteriza pela ocorrência de um resultado para sua consumação, caso contrário, tem-se apenas tentado. Por último, o crime de mera conduta diz respeito àquele que não produz um resultado concreto, não punindo o resultado, mas a conduta.

Pela simples conceituação de ambos, observa-se que todos eles deixam vestígios. Até mesmo pela mera conduta, como, por exemplo, ocorre com o porte ilegal de arma. E ainda assim exige-se a perícia para se comprovar a materialidade.

A prova pericial, como advertem os juristas Fellipe Matheus da Cunha e Natalie Alves Lima, “não é questão de mera política criminal; mas, ao contrário, tem relação indissociável com os direitos e garantias do acusado, sobretudo com o direito à presunção de inocência, bem com a efetividade da persecução penal — a partir de sua elevada força probatória”.

Com o advento da Lei nº 13.964/2019, que alterou o CPP, introduziu-se ao art. 158 o instituto da “cadeia de custódia” (art. 158-A); e o rastreamento do vestígio pelo reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte (art. 158-B).

A inovação processual penal recente dita que a cadeia de custódia é o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

Também impõe a lei que todos os Institutos de Criminalística deverão ter uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios, e sua gestão deve ser vinculada diretamente ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal (art. 158-E).

Com a inovação, que introduziu a cadeia de custódia, concedeu-se maior prestígio ao reportado art. 158, do CPP, com a perícia ou o exame de corpo de delito ganhando mais força na apuração de qualquer crime, seja ele formal, material ou de mera conduta.

Assim, a cadeia de custódia pretende, primeiro, assegurar a integridade da prova e seus elementos formadores; segundo, regular a utilização da prova a uma evidência em juízo, garantindo-se a cronologia do crime; e, terceiro, assegurar o rastreamento probatório e sua respectiva autenticidade e confiabilidade.

Descumprir a exigência legal da cadeia de custódia vicia e torna nulo o processo, “ex vi”, do art. 564, item IV, do CPP, por omissão de formalidade que constitua elemento essencial ao ato, no caso o procedimento investigatório.

A começar pelo delegado de polícia, como presidente da investigação e, consequentemente, do inquérito policial, a cadeia de custódia não é atividade exclusivamente da perícia. Não! Incumbe a todos os “atores” responsáveis pela investigação e pela preservação, integridade, idoneidade e valoração dos indícios e das provas coligidas para a investigação. 

Como diz Alberi Espíndula, “qualquer policial, seja ele civil ou militar, que for receptor de algum objeto material que possa estar relacionado a alguma ocorrência, deve também – já no seu recebimento ou achado – proceder com os cuidados da aplicação da cadeia de custódia. E essas preocupações vão além da polícia e da perícia, estendendo-se aos momentos de trâmites desses objetos da fase do processo criminal, tanto no ministério público quando na própria justiça” (in “Perícia Criminal e Cível: uma visão geral para peritos e usuários da perícia”, 3ª edição, Campinas, Millenium, p. 165).

A obrigatoriedade da perícia criminal ou do exame de corpo de delito passou agora a ser definitivamente uma norma cogente, não havendo mais dúvida e nem brechas para discussões dúbias e equivocadas, impondo-se reconhecer que as disposições legais inovadoras são evidentes e incontestáveis quanto o caráter impositivo do exame pericial em todo e qualquer delito, independentemente da sua natureza, quer na forma direta como indireta.

Por que da inovação legal com o estabelecimento da cadeia de custódia?

Porque não podemos confundir exame de corpo de delito com perícia em geral. O primeiro diz respeito aos elementos que constituem a própria materialidade do crime. A perícia, em determinados casos, poderá ser aquela realizada com outros elementos que possam afetar o convencimento do juiz. A perícia independente, como meio de prova a ser utilizado pela defesa, insere-se dentro das hipóteses de elementos que podem afetar o convencimento do julgador.

Portanto, a falta de comprovação da materialidade da infração, seja pelo exame de corpo de delito ou do exame pericial, como instrumento indispensável para a comprovação da materialidade da infração, leva por consequência à nulidade do processo (art. 564, inciso III, letra “b”, do CPP) ou, em última hipótese, por imposição do “in dubio pro réu”, à absolvição deste em razão do princípio da presunção de inocência, por força do art. 386, VII, do CPP. A exceção à regra somente ocorre pela previsão legal do art. 167, segundo o qual “não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”, traduzindo este dispositivo no chamado “exame de corpo de delito ou exame pericial indireto”.

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