Juiz Indigno, Desonroso e Indecoroso

Juiz Indigno, Desonroso e Indecoroso

O caso do desembargador paulista que desonrou e desacatou guardas municipais tem repercutido negativamente para a Justiça do Estado de São Paulo. Para o mestre em Direito e hermenêutica filosófica, Djefferson Amadeus, na abordagem dos guardas ao magistrado que não usava máscara em uma praia de Santos-SP, “teve de tudo – ou quase tudo: “carteirada”, xingamento, rasgou a multa e jogo-a no chão, além do famoso: “conheço o fulano, beltrano e cicrano.” Impressionante. Parecia um filme sobre a história do Brasil, ou melhor: um filme sobre a parte do Brasil que nos faz sentir muita vergonha de ser brasileiros”.

“Lembrai, senhoras e senhores, que o arbítrio, aviltamento e a humilhação em face de um guarda municipal, que apenas cumpria suas funções, se deu por um representante da justiça. Ou seja: o Desembargador, que deveria ser o responsável por desembargar a dor, foi o causador da dor”, diz o mestre citado.

De imediato, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou uma apuração severa do fato. De plano, o ministro Humberto Martins, corregedor do órgão, considerou indícios de possível violação aos preceitos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e ao Código de Ética da Magistratura, impondo a necessidade de averiguação.

Além das infrações administrativas de jogar lixo na praia e andar sem máscara, daí as multas aplicadas pelos guardas municipais, o desembargador cometeu no mínimo cinco crimes, a saber: abuso de autoridade, injúria e injúria racial, desacato e tráfico de influência.

Com a série de infrações de extrema gravidade para a liturgia do cargo, como, por exemplo, a injúria racial, por ter apontado seu suposto algoz como “analfabeto” e “negro”, a figura pública da Justiça Paulista ainda acumula um histórico de abuso de autoridade. No tribunal ele gritou com uma copeira por não ter colocado um sabor ao suco do qual ele gostava. Uma desembargadora já o processou por difamação e injúria. No tribunal o homem é considerado “pessoa desprezível”, conta a mesma desembargadora.

Infelizmente, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei nº 35, de 14 de março de 1979) é capenga e não dispõe de medida exemplar para punir o desembargador infrator. A injúria, a injúria racial e o crime de abuso de autoridade já seriam suficientes para se decretar o perdimento da função pública, a perda do cargo, como punição aceitável e convincente.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a perda do cargo ocorre nas seguintes situações:
Art. 26 - O magistrado vitalício somente perderá o cargo (vetado):

I - em ação penal por crime comum ou de responsabilidade;

II - em procedimento administrativo para a perda do cargo nas hipóteses seguintes:

a) exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular;

b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento;

c) exercício de atividade politico-partidária.

Pelos crimes comuns praticados pelo desembargador, somente perderia o cargo após sentença penal condenatória transitada em julgado. Um processo exaustivo e sem resultado prático imediato para atender as expectativas e o clamor público.

Administrativamente, muito embora gravíssimo o ato indigno, desonroso e indecoroso do magistrado, somente perderá o cargo, como dito, em três situações: “exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular”; “recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento”; e “exercício de atividade politico-partidária”.

O art. 42, do referido diploma legal, diz que são penas disciplinares aplicáveis ao magistrado infrator a advertência, a censura, a remoção compulsória, a disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, a aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço e a demissão.

Abordaremos cada uma delas por eliminação. As penas de advertência e de censura somente são aplicáveis aos juízes de primeira instância (parágrafo único, art. 42). Punições que não abarcam desembargadores.

A remoção compulsória não cabe em se tratando de desembargador, haja visto que não há mais outra entrância a galgar pelo magistrado ora investigado.

Restariam, pois, a disponibilidade com vencimentos proporcionais, a aposentadoria compulsória também com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço e a demissão.

À exceção da demissão, as outras duas punições ecoarão na sociedade como prêmios para o juiz infrator. Até pela gravidade dos crimes praticados.

Vamos, então, à penalidade de demissão.

O art. 47, da referida lei, diz que a pena de demissão será aplicada aos magistrados vitalícios somente nos casos previstos no art. 26, I e Il, ou seja, por “condenação em ação penal por crime comum ou de responsabilidade”; por “condenação em procedimento administrativo para a perda do cargo por exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular”; ou por “recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento”.

Observe que, em se tratando de punição administrativa para a consequente perda do cargo vitalício, nenhuma das situações se enquadram ao caso do desembargador paulista. Por quê? Porque a lei é ultrapassada. Que ao invés de punir, exemplarmente, acaba premiando.

Quanto ao Código de Ética da Magistratura Nacional, considerando-se que é fundamental para a magistratura brasileira cultivar princípios éticos, pois cabe-lhe, também, função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais, a lei veda ao magistrado “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções”, cometendo-lhe o dever de “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”, com integridade de postura fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional, contribuindo o magistrado para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura nacional da qual faz parte.

Assim, em consonância com o art. 16, do Código de Ética, o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral.

Ainda que se trate de juiz indigno, desonroso e indecoro, por comportamento social incompatível com o cargo e as relevantes funções judicantes, por ser meramente conceitual, Código de Ética não impõe punição por seu caráter estritamente didático e principiológico.

O certo é que o caso do desembargador paulista demonstra que o Brasil enfrenta mesmo um momento ímpar e grave. Quando se busca honradez e credibilidade para o papel do Poder Judiciário como aliado do Estado Democrático de Direito, este enfrenta entraves legais para banir de seus quadros membros com condutas indecentes e antiéticas e que atingem a toga de forma implacável, humilhante e vergonhosa.

A título de argumentação, o objetivo da instituição da vitaliciedade da magistratura brasileira no vigente texto constitucional foi permitir maior liberdade de atuação ao juiz. Não para se transformar em “salvo conduto” para o crime ou para ser usada como instrumento para abusos de autoridade e de impunidade para juízes desonrosos.

O ato inconsequente e desequilibrado do desembargador reforça a tese discursiva sobre uma mudança substancial na Constituição Federal, mais precisamente nos arts. 93 e 95, para impor a imperatividade de que a aposentadoria de juízes não tenha mais caráter disciplinar. E a perda do cargo por procedimento incompatível com o decoro e a dignidade das funções e do cargo seja considerada, exemplarmente, com pena de demissão.

Infelizmente, a sociedade ainda não alcançou o patamar almejado porque alguns magistrados insistem e persistem em entender que uma mudança na Carta Magna violaria a garantia da vitaliciedade, ferindo de morte a independência funcional e a autonomia do Poder Judiciário.

Compreendo perfeitamente que a vitaliciedade da magistratura nacional deva ser mantida em toda sua plenitude constitucional, abrangendo, inclusive, contornos de fortalecimento. Afinal, o magistrado deve, sim, sentir-se sem amarras e protegido para julgar. Mas, até para o bem dos bons e zelosos profissionais, entendo ser necessário modernizar-se o regime disciplinar, para expurgar dos quadros do nosso magistério jurisdicional aquela figura que subverta o “múnus” público, desviando-se da lei e maculando a Instituição Judiciário, desqualificando-a para, enfim, desnaturar princípios constitucionais e enodoar direitos e deveres fundamentais albergados, sinônimos que são de alinhamento, de correção, de primor, de aprumo e de comprometimento ético.

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