Promotor alerta para o descrédito do sistema jurídico brasileiro

Promotor alerta para o descrédito do sistema jurídico brasileiro

“O sistema jurídico brasileiro pode ser totalmente desacrediado”, alerta o promotor de Justiça Rômulo Cordão no 5º e último artigo da série Impeachment. 

Por Rômulo Cordão, promotor de justiça (Foto: divulgação)

Leia:

Impeachment 5

Por Rômulo Cordão 
Promotor de justiça 

A hermenêutica jurídica brasileira anda num terreno movediço que poderá lhe custar o total descrédito e, portanto, a própria razão de ser de todo o sistema jurídico. Nas lições mais comezinhas do estudo jurídico sabemos que existem regras interpretativas, mecanismos de interpretação, princípios basilares, tudo no sentido de auxiliar o intérprete da norma a decidir de acordo com o espírito da nossa Constituição, extraindo-se, pela hemeunêutica, a essência íntima dos nossos diplomas constitucionais e infraconstitucionais.

A hermenêutica, na prática, serve para que em situações de conflitos aparentes ou reais entre normas ou , quiçá, princípios, o intérprete realize a cominação do fato à norma corretamente, buscando sempre o império maior, que é o do Justo em sentindo amplo e estrito. Isso, evidentemente, é um mecanismo que busca a segurança jurídica, a estabilidade do sistema, e não ao revés, decisões relativistas ou mesmo causuísticas.

Um exemplo atual é a lei 13.964/19 que materializou o princípio contitucional do sistema penal acusatório (já delineado nos artigos anteriores). Ora, a referida lei veio a dizer o que já era uma obviedade para a doutrina pátria, ou seja, a de que o juiz não pode se imiscuir na formulação da prova, o magistrado não deve se substituir a função acusatória reservada ao Ministério Público (art. 3-A CPP). Contudo, a "hermenêutica", "super atual", aplicada pelo STF é que em investigações que tem como supostas vítimas membros daquela Corte, tal princípio não se aplicaria como se aplica aos demais sujeitos do sistema.

Sim,  veja-se o absurdo, ao se construir um entendimento que nesses casos "excepcionais", o juiz instrutor, ou seja, aquele que conduz a investigação anômala, já que em tese o art. 43 do RISTF permitiria a sua presidência por um ministro, é responsável pela confecção da prova. E como ficaria a função de juiz de garantias? Traduzindo-se,  a quem seria atribuida a função de verificar se os direitos dos investigados estão sendo respeitados, se há ou não abuso investigativo, enfim. Será que também ficaria afeta ao mesmo ministro-investigador ou ao seus pares ministros-vítimas? Veja que tal interpretação, a nosso sentir, causa a dislexia do sistema. Sistema este, constitucional, que alçou à garantia individual do cidadão o direito a ter, eventual lesão ou ameaça a direito seu, amparada pelo Poder Judiciário. Mas, como se pode amparar tal direito, quando o juiz das garantias é o mesmo que desrespeita as garantias do cidadão, não havendo a previsão de órgão revisor.

As interpretações ao talante do intérprete já foram responsáveis por toda sorte de miséria que a humanidade já viu, da escravidão ao holocausto, da inquisição ao taliban. O fato é que a hermenêutica vem para trazer solidez, estabilidade, lucidez, a ciência de interpretar. Interpretar não é achismo, ou fruto de um sentimento meramente pessoal, interpretação não é um caule fino que se norteia de acordo com a força e direção do vento, mas cunhado em princípios e regras rígidas, por isto é que se fala em escala de princípios.

Um parêntesis à parte nesse último artigo, devo fazer em relação a leniência ou a desonestidade intelectual de parte da comunidade jurídica, acerca de como o STF vem interpretando a Constituição Federal de acordo com seus próprios interesses, se distanciando cada vez mais da boa hermenêutica. 

Vejamos: Uma hora a prisão em segunda instância é possível, tempos depois não é mais; a prisão de parlamentar em exercício do mandato não é possível senão com a autorização da casa legislativa, logo depois tudo torna-se possível, tragicamente, vale dizer, quando são os parlamentares que atacaram a própria corte; o juiz que se mete na busca da prova se compromete, agora no caso do STF pode, pois está amparado "no maior diploma normativo existente no país", o regimento do STF. Ironias à parte...

Tivemos, após 1988, dois presidentes da república impedidos (Collor e Dilma) e um quase impedido (Temer), causa assombro o Senado Federal que outrora teve coragem para dar encaminhamento a tais casos, em relação ao Min. do Supremo, declarar abruptamente, ab initio, a impossibilidade de sequer abrir uma discussão democratica para saber acerca da existência ou não de crime de responsabilidade, decisão essa amparada em um simplório parecer da assessoria legislativa que disse  ter "ausência de tipicidade e justa causa" para a deflagração do processo de impeachment, aduzindo o presidente do Senado que assim restaria preservada a independência entre os poderes. 

A abertura de procedimento não desprestigia a independência entre os poderes, ao contrário, reforça a independência entre os poderes, é tanto que tal possibilidade tem previsão constitucional, caso contrário sequer existiria a lei 1.079/50 e o art. 102 CF/88. Nesta toada, sem entrar no mérito se houve ou não crime de responsabilidade, o parlamento perde uma oportunidade de exercer seu múnus, e discutir democraticamente acerca do fato, posto que ninguém está acima da lei ou da Constituição. Tal postura, decerto reforçará atitudes ainda mais ativistas por parte do STF, já que, se em crimes comuns é a própria corte que julga os seus pares e, como vemos, atualmente, vem impedindo sequer a abertura de inquérito para investigá-los (caso da delação de Sérgio Cabral que apontou o Min. Dias Toffoli em esquema de corrupção), nos crimes de responsabilidade contará com a leniência do parlamento.

A Constituição cidadã do saudoso Ulisses Guimarães nunca esteve tão debilitada.

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