Crise de autoridade e a urgente reforma do Processo Penal

Crise de autoridade e a urgente reforma do Processo Penal

No mundo, não só no Brasil, o agravamento da violência tem lugar sempre que há crise de autoridade. Os valores se invertem e promovem um círculo vicioso que leva às mais variadas situações. E cada vez piores. Enfim, o caos tende a se estabelecer quando o crime desafia e não respeita mais as autoridades constituídas. Com a sociedade diante da ausência de limites em que se rompem todos os padrões. Uma ruptura que tem comprometido as questões mais básicas da convivência coletiva.

Edward Veith, em seu livro “Tempos pós-modernos”, faz uma observação interessante: “A pós-modernidade trouxe consigo um total desapego e desrespeito a todo tipo de autoridade”. Através da desobediência e da agressão, da afronta desmedida, infelizmente, essa ruptura tem pregado que não há mais “verdades” no Brasil. Ai surge toda espécie de questionamentos, sobretudo jurisdicionais.

“Quando não há verdades absolutas o intelecto dá lugar a vontade”, diz Edward Veith. “Critérios estéticos substituem critérios racionais. Logo, uma autoridade se não falar o que os liderados gostam, estará sentenciada a ser rechaçada, hão de resistir a ela com todas as forças, até que a torne nula. Que sejamos pessoas dispostas a resgatar valores,  tais como  respeito e reverência às autoridades, valores que a sociedade moderna há muito enterrou”.

No campo criminal brasileiro, estamos atrasados em relação às reformas legislativas que reclamam o nosso Processo Penal. Caduco, o Código de Processo Penal tem 77 anos de existência (Decreto-Lei 3.689, de 1941). Durante todo o período sofreu apenas algumas alterações pontuais. Porém, não acompanhou as adequações e as mudanças introduzidas pela Constituição Federal.

Por ser obsoleto, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 8045/2010 que visa instituir um novo código. O projeto é dividido em 6 livros e prevê modificações significativas: “agiliza os procedimentos; diminui o número de recursos; estabelece uma série de direitos ao acusado e à vítima; revê o funcionamento do Tribunal do Júri; define claramente a função de cada um dos sujeitos processuais; estabelece expressamente o processo penal do tipo acusatório, buscando garantir a imparcialidade do órgão julgador e a presunção de inocência do acusado; proporciona garantia de sigilo da investigação e a preservação da intimidade dos envolvidos; cria a figura do juiz de garantias; propõe novas medidas cautelares em substituição a prisão preventiva; põe fim a prisão especial; traz mudanças no interrogatório, no uso de escutas telefônicas, no valor da fiança, além de muitas outras mudanças”.

Segundo o jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, em "Novo Código de Processo Penal pede nova mentalidade", publicado na Revista Consultor Jurídico, “pode-se ter um novo Código de Processo Penal, constitucionalmente fundado e democraticamente construído, mas ele será somente linguagem se a mentalidade não mudar”.

Mesmo com o novo Código, especialistas consideram que o processo penal brasileiro permanecerá burocrático, demorado, ineficaz e desmoralizado. Como diz Jacinto Coutinho, somente uma mudança de mentalidade fará com que o Brasil tenha um processo penal respeitado, ágil e eficiente.

Há, hoje, quase que uma unanimidade para que adotemos aqui o modelo processual penal do Chile. No Chile, por exemplo, as partes ficam diante do juiz e as provas são produzidas durante as audiências. Só 10% dos casos viram processos. E o resto se resolve por meio de negociação.

Fernanda Ravazzano, doutora em Direito Público e professora de Direito em Graduação e Pós-Graduação, fez um estudo sobre o processo penal chileno: “Primeiramente, são três etapas no processo chileno: o juízo de garantias (que pode ser precedido da audiência de detenção/custódia); a etapa intermediária (em que se analisará se as provas colhidas pela acusação – podendo também serem produzidas pela defesa – são legais e podem ser usadas no juízo oral); o juízo oral (fase instrutória, em que teremos o julgamento realizado por três juízes que não entraram em contato com o processo – anteriormente -, garantindo-se a imparcialidade.

No Chile, registrou Fernanda, a principal mudança foi cultural. “Vivemos um momento particularmente delicado no Brasil, em profunda crise política, econômica, social e, porque não afirmar, cultural. Estamos no auge do discurso punitivista, discurso da intolerância, do ódio, numa fase de demonização da figura do réu e do advogado. Defender as garantias processuais virou sinônimo de “banditismo”, corrupção”.

O sistema chileno também estabelece que o juiz responsável pela condução do inquérito – que solicita produção de provas, por exemplo –, não seja o mesmo  juiz do processo do conhecimento. “É um órgão colegiado que julga. A ideia é evitar que o juiz do processo não seja influenciado por alguma prova cuja produção tenha autorizado e nem tenha ideias preconcebidas a respeito do processo”, afirma o juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Luciano Losekann, um dos juízes que participaram de capacitação em 2011, em Santiago, uma iniciativa do CNJ e do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA).

Para realçar seu trabalho em confronto com a nossa caduca realidade processual-penal, a doutora Fernanda Ravazzano faz uma série de indagações: “Como lutar por uma reforma no CPP em que nas audiências públicas há propostas de parlamentares para voltarmos aos castigos corporais? Como sustentar a preservação das garantias quando a sociedade defende a prisão para delação e o poder judiciário a aplica? O vazamento das interceptações telefônicas? A produção probatória pelo juiz? O ônus da prova para a defesa? O indeferimento da produção de provas pela defesa, por serem consideradas protelatórias (sem se que o juiz sequer apresente o porquê da sua decisão)? Como afirmar que o Ministério Público deve defender a sociedade e não simplesmente acusar, quando nos deparamos com denúncias de uma ou duas páginas, pois o parquet, mesmo sem provas, sem saber se houve crime, deve denunciar de qualquer jeito para combater a impunidade? E como reforçar o diálogo quando advogados já entram em salas de audiência prontos para a briga?”.

“Os Chilenos foram muito corajosos: passaram de uma estrutura inquisitorial, como a nossa, e hoje têm um sistema acusatório invejável (nada obstante algumas falhas detectadas). Houve muita resistência, porém, com inteligência e estratégia, souberam transpor este obstáculo”, diz o Procurador de Justiça na Bahia e Professor de Direito Processual Penal, Rômulo de Andrade Moreira.

No Chile, o órgão jurisdicional de maior hierarquia é a Corte Suprema, que, além de estar incumbida de velar pela correta aplicação da lei chilena, exerce controle administrativo e disciplinar sobre todos os outros tribunais e juízes do país. As Cortes de Apelação atuam como tribunais de segunda instância, exercendo, dentro de uma determinada área de jurisdição definida por lei, a fiscalização e o controle dos tribunais que se localizam nesse território.

Existem, no Chile, os chamados Tribunais de Garantia, encarregados de exercer a tutela acautelatória dos direitos fundamentais das vítimas e réus, ao tempo em que compete aos “Juzgados Orales en lo Penal” decidir pela absolvição ou condenação do réu.

O Ministério Público, chefiado pelo Fiscal Nacional, é o órgão encarregado de conduzir com exclusividade a investigação. Nesse sentido, dispõe o artigo 3º, do Código de Processo Penal chileno: “Art. 3º – Exclusividade da investigação. O ministério público dirigirá de forma exclusiva a investigação dos atos constitutivos de delito, os que derterminarem a participação punível e os que acarretarem a inocência do réu, na forma prevista pela Constituição e pela lei”.

A estrutura do Ministério Público foi criada pela Lei Orgânica Constitucional chilena para defender os interesses da sociedade, cabendo-lhe iniciar as ações penais perante os ‘Tribunais de Juízo Oral’. O Ministério Público está organizado em unidades, que tratam de matéria específicas, como, por exemplo, narcotráfico, lavagem de dinhei¬ro e crimes econômicos.

O modelo do sistema do Chile, se um dia implantado no Brasil, traria uma enorme vantagem para o Judiciário: contribuir para a produtividade da nossa magistratura, o índice do CNJ para medir a celeridade dos processos judiciais e, em consequência, assegurar a razoável duração do feito.

 

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