A legítima defesa e o “abate” de criminosos armados

A legítima defesa e o “abate” de criminosos armados

A proposta do governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, para “abater” (matar) criminosos portando fuzis por policiais atiradores de elite (snipers) movimentou o mundo jurídico nacional e as entidades do mundo inteiro que defendem os direitos humanos. De acordo com o novo governador, a ação seria justificada pelo instituto da “legítima defesa”.

Os chamados “snipers” são policiais altamente preparados e treinados para efetuar disparos de arma de fogo com extrema precisão, cuja ação pode ser escalonada da seguinte forma, de acordo com Marcelo Lessa:

TIRO DE COMPROMETIMENTO, que se constitui em um único disparo com aptidão para neutralizar o alvo instantaneamente, provocando, em regra, a sua morte;

TIRO SELETIVO, que é o disparo efetuado contra o instrumento capaz de causar a ameaça e não contra o agressor;
 
TIRO DE CONTENÇÃO, onde o policial almeja atingir pontos não vitais do agente, acarretando a sua incapacitação mecânica (de deslocamento).

A Anistia Internacional repudiou a proposta do governador eleito. Segundo a Anistia Internacional, o "abate" afronta a legislação brasileira e internacional, além de desrespeitar as regras de uso da força e de armas de fogo. Segundo ainda a entidade, autorizar previamente os policiais a atuarem de forma violenta resultará em uma maior escalada da violência, colocando em risco a vida de centenas de milhares de pessoas, inclusive os próprios agentes da segurança pública.

A questão jurídica central reside na excludente de criminalidade “legítima defesa”. Como professor de Direito, o governador eleito entende que os atiradores de elite estarão protegidos pelo instituto, não devendo responder criminalmente pela “matança” de criminosos em situação iminente de agressão contra ss forças públicas e a sociedade.

O tema, realmente, é muito polêmico. O nosso Código Penal, em seu art. 25, define explicitamente o que seja legítima defesa: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei Federal nº 7.209, de 11.7.1984)”.

O dispositivo legal tem dois núcleos jurídicos: “moderação” e “agressão atual ou iminente”.

A moderação talvez seja o entrave maior para se colocar em prática uma proposta de tamanha magnitude. Conceitualmente, moderação é a virtude de permanecer na exata medida, no exato comedimento. Para o Direito Penal, “moderação é o requisito da que exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente permitido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão” (Francisco de Assis Toledo, em “Princípios básicos de Direito Penal”, p. 204).

O festejado jurista Luiz Flávio Gomes, ex-magistrado, entende que a moderação deverá ser analisada em cada caso concreto, buscando-se a análise de qual o momento o sujeito no exercício da legitima defesa poderá ter ciência da cessação da agressão injusta, para que os atos em excesso possam ser-lhe imputados.

Entre os dois núcleos insculpidos no art. 25, do Código Penal, o da “moderação” talvez seja o mais complexo para se colocar em prática a proposta do governador do Rio diante das vigentes normas constitucionais.

Na discussão, em sua obra Curso de Direito Penal, p. 446, 2018, Rogério Greco trás colocações jurídicas extremamente relevantes para a questão envolvendo “injusta agressão” “moderação” “atualidade ou iminência da agressão” e “defesa de direito próprio ou de terceiro”. Veja:

INJUSTA AGRESSÃO – representada na ameaça humana, não amparada pelo direito,  de lesão a um bem juridicamente protegido;

USO MODERADO DOS MEIOS NECESSÁRIOS PARA REPELIR A AGRESSÃO – os meios de que dispõe o agente no momento em que sofre a agressão injusta, devendo a reação ser proporcional e suficiente para cessar o ataque sofrido, sob pena de incorrer em excesso;

ATUALIDADE OU IMINÊNCIA DA AGRESSÃO – “atual” é a agressão que está acontecendo, ou em continuidade, e “iminente” é aquela que está para acontecer;
 
DEFESA DE DIREITO PRÓPRIO OU DE TERCEIRO – a legítima defesa abrange não apenas a proteção de direito próprio, mas também de terceiros.

A proposta do governador eleito do Rio esbarra justamente nos núcleos definidos pelo citado art. 25 da nossa Lei Penal Maior. O dispositivo legal trás em si a cláusula constitucional fundante defendida em todas as legislações democráticas do mundo: a razoabilidade da legítima defesa, tendo como alicerce o Estado de Direito.

Perguntas soam no cenário jurídico nacional e internacional: “Como conciliar os requisitos da legítima defesa no “abate” de criminosos armados por atiradores de elite?. Como precisar, na proposta, a moderação, a atualidade e a iminência de uma provável agressão?”

“Para que possa ser considerada iminente a agressão, deve haver uma relação de proximidade. Se a agressão é remota, futura, não se pode falar em legítima defesa” (Rogério Greco, obra citada).

A proposta do governador eleito é baseada na seguinte doutrina: É possível, em tese, falar em legítima defesa de terceiros. Uma vez iniciada a operação, se um atirador posicionado observa certo integrante de uma facção criminosa em posição de tiro aguardando a aproximação dos policiais, deve ser “abatido”. Segundo o pensamento jurídico que defende a tese esposada pelo governador eleito, a redação do art. 25, do Código Penal, também admite interpretações diversas, inclusive ampliando seu âmbito de aplicabilidade, a depender da interpretação a ele conferida pelo operador do Direito em cada caso concreto.

A conclusão é de que se um policial verifica que indivíduos estão portando armas de fogo ilegalmente pelas vias públicas, tem o dever de agir. A interpretação extensiva estaria na redação do art. 301, do Código de Processo Penal, segundo qual “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Implicitamente, querem dizer que a interpretação do dispositivo seria extensiva não só para prender o criminoso (caso de rendimento), mas, também, para “abater” caso haja resistência deste quando patente o perigo iminente de uma agressão injusta ao policial e às forças de segurança encarregadas de uma operação de combate ao crime.

De fato, como bem salientam os estudiosos, o policial não precisa esperar que uma arma lhe seja apontada, tornando quase impossível a reação. Como diz Claus Roxin, em sua obra “Derecho Penal”, 2ª. Edição, Madri, Tomo I, pp. 618-619, ”a reação pode se dar em momento anterior, mas nunca na existência de um risco remoto”.

Para concluir, bem oportuna a colocação do delegado Francisco Sannini Neto, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Especialista em em Direito Público, Professor da Gradução e da Pós-Graduação da Unisal/Lorena e do Complexo Damásio de Ensino, que diz: “Fato é que, ao menos, a defesa política do abate trouxe à baila importante discussão jurídica costumeiramente negligenciada no país, de sorte que pode significar o primeiro passo para o amadurecimento da discussão acerca das hipóteses de exclusão de ilicitude na doutrina nacional. A realidade, por vezes, é a mola mestra da produção intelectual, sendo certo que dogmática (tida por muitos como academicismo) e facticidade são complementares. A dissociação entre essas esferas – revelada em estudos acadêmicos assépticos, ou em frases feitas que beiram a obtusidade, como “na prática, a teoria é outra” – é o que de mais pernicioso pode acontecer para a evolução dos institutos jurídicos”.

Os analistas se mostram divididos no Brasil. Para a cientista social especialista em Segurança Pública, Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção da Universidade Cândido Mendes, “se a alta letalidade da polícia fosse a solução, o problema de segurança já estaria resolvido”.

A proposta do governador eleito do Rio encontra ressonância na forma e na modalidade da legítima defesa antecipada ou preordenada.

A propósito, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 7105/14, do então deputado federal Jair Bolsonaro, hoje presidente eleito, para retirar do art. 25, do Código Penal, as expressões “usando moderadamente dos meios necessários”, para não caracterizar como crime quaisquer atos de legítima defesa própria e de terceiros.

Para o presidente eleito, as expressões constituem “um mecanismo de proteção ao marginal”. “Aquele que, corajosamente, defende sua própria vida ou patrimônio, ou mais, se arrisca para defender outra pessoa, deve ter o apoio da legislação e não ser penalizado por ela em circunstâncias nas quais se apresente risco, tendo que avaliar a forma e os meios a serem utilizados”, disse.

“A finalidade – justifica o presidente eleito – é deixar de punir o excesso culposo de quem age em legítima defesa própria ou de terceiros, pois entendo que, quem repele injusta agressão ou sai em defesa de quem está submetido à violência, não pode ser punido por eventual excesso, pois não é cabível exigir, de uma pessoa comum, prudência, perícia ou habilidade específica no calor de um acontecimento adverso”.

 

 

 

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