Jurista critica decisão e afirma que caso Arimateia Azevedo é uma espécie de “laboratório forense”
Jurista critica decisão e afirma que caso Arimateia Azevedo é uma espécie de “laboratório forense”
O jurista Miguel Dias voltou a analisar o caso relacionado à prisão do jornalista Arimateia Azevedo. Apesar de ter vários problemas de saúde e ser do grupo de risco da covid-19, o colunista do Portal AZ se apresentou nessa quinta-feira (23) à polícia. Segundo o advogado, é necessário ter base e segurança jurídica firmada para enfrentar “esse imbróglio" envolvendo o jornalista e a Justiça do Piauí.
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Colunista do Portal AZ se apresentou à polícia nessa quinta-feira (23)
Para o jurista, o caso Arimateia Azevedo é uma espécie de “laboratório forense”. Ainda em seu texto, Miguel Dias comentou sobre a “delação” que teria sido feita por Francisco Barreto e chamou atenção para a classe jurídica das expressões usadas na denúncia. Leia abaixo o artigo na íntegra.
Caso Arimateia – Delação Viciada
É necessário ter base e segurança jurídica firmada para enfrentar esse imbróglio envolvendo o jornalista piauiense Arimatéia Azevedo e a Justiça do Piauí. Como oportunamente disse o jornalista Zózimo Tavares, o que se faz com Arimatéia “é um embargo ao livre exercício da profissão, à Constituição do Brasil e à democracia”.
Nesta quinta-feira (23), advertido e por sugestão de um colega e amigo profissional do Direito, debrucei-me sobre a “delação” do outro investigado e denunciado Francisco Barreto, sujeito de “colaboração premiada” levada a cabo somente após sua prisão com Arimatéia Azevedo, considerada pelo Ministério Público como um verdadeiro “achado” para incriminar o principal “ator” da investigação, resultando em um “termo de acordo”, tendo o preso prestado, segundo o “parquet”, “...contribuição independente,...” (sic).
Chamo a atenção de todos e em especial da classe jurídica para as expressões “...contribuição independente,...” contidas na denúncia do Ministério Público. Antes, admoesta-se: a lei fala em “contribuição espontânea”.
Pela hermenêutica jurídica, qual seria, então, a diferença de “independente” para “espontânea”? Afinal, seria a mesma coisa “independente” e “espontânea”? Não, de forma alguma!
A diferença principal é que “independente” funciona, na frase, como adjetivo, para modificar o sujeito. Se a frase empregada na denúncia do Ministério Público fosse construída como “...contribuição espontânea,..., estar-se-ia diante daquilo que ocorreu naturalmente, de iniciativa própria, sem artificialismo, com sinceridade, para fazer declaração por si mesma e sem obrigação alguma ou por promessa para se beneficiar no futuro e prejudicar outrem no presente.
Sejamos sinceros! Escamoteou-se o princípio basilar da lei, que é seu maior alicerce, que é a “espontaneidade”. Aqui reside a “chave” para se compreender por que os dois termos têm usos distintos na construção da narrativa ministerial para incriminar Arimatéia Azevedo com uma suposta “delação” e com o suposto delator preso, doente e fragilizado. Com todo o respeito, ninguém me convence de que uma pessoa presa e pressionada psicologicamente da forma como ocorreu, de inopino, possa fazer uma declaração livre e espontânea dessa envergadura criminal. Não! Poderá até assinar um termo; mas, não “em termos”.
No curso de qualquer investigação ou instrução criminal cabe ao jurista e ao intérprete desvendar o que chamamos no estudo aprofundado do Direito Penal de “princípio da contaminação”, que aponta os vícios transmitidos na coleta dos indícios e das provas que podem macular, literalmente, uma investigação e uma instrução penal.
Na ampla defesa, a mais sublime e exuberante missão do Direito Criminal, cabe ao operador das leis debruçar-se sobre a consagrada teoria dos “fruits of the poisonous tree” (frutos da árvore envenenada), cunhada pelo juiz Felix Frankfurter, da Suprema Corte dos Estados Unidos. A lógica por trás da teoria, diz o jurista Carlo Velho Masi, é que a árvore que está envenenada gerará frutos que estarão igualmente contaminados, por derivação.
Na doutrina de Marcos Eberhardt, em seu festejado “Provas no Processo Penal: análise crítica, doutrinária e jurisprudencial”, Livraria do Advogado, 2016, pgs. 219-220, colhe-se que, “as provas ilícitas, ilegais, vedadas ou proibidas constituem uma categoria na qual se incluem as provas ilícitas stricto sensu (obtidas pela infração de normas constitucionais ou regras penais materiais) e as ilegítimas (obtidas pela violação de normas de direito processual penal). A prova ilícita stricto sensu é inadmissível e deverá ser desentranhada dos autos”.
Para Ada Pellegrini Grinover, em “O processo em evolução”, São Paulo, Forense Universitária, pgs. 47-48, “as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição inadmissíveis, não são por esta tida como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as conduz à categoria da inexistência. Elas simplesmente não existem como provas: não têm aptidão para surgirem como provas”.
A consequência jurídica da ilicitude por derivação, diz Masi, é a inadmissibilidade da prova produzida. E cita: “A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos ‘frutos da árvore envenenada’) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal” (STF, RHC 90.376/RJ, j. 03.04.2007, rel. Min. Celso de Mello).
Para quem deseja estudar e debater o caso Arimatéia Azevedo, comece a pensar numa espécie de “laboratório forense”, obrigando o jurista a se aprofundar na questão técnico-jurídico para buscar esse “princípio da contaminação” pela Teoria da Ilicitude da Prova bastante intrincado nas estranhas da investigação e da acusação contra o jornalista.
A teoria, incluída no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei Federal nº 11.690/2008, inserida no art. 157, § 1º, do citado diploma legal, trata do regime de exclusão das provas derivadas das ilícitas no âmbito processual. “A nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dele diretamente dependam ou sejam consequência” (art. 573, §1º).
Logo - diz Carlo Velho -, é possível afirmar que a “teoria dos frutos da árvore envenenada” é passível de aplicação a partir de atos de investigação preliminar ilícitos que padeçam de nulidade, e não apenas de atos processuais, contaminando todos os elementos deles decorrentes. Porque são inadmissíveis os atos investigatórios ilícitos por derivação, devendo ser desentranhados dos autos.
Vamos, então, à “delação”!
De conformidade com o § 1º, do art. 1º, da Lei Federal nº 12.850/13, “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
Na forma preceituada no art. 288, do Código Penal (com nova redação dada pela Lei 12.850/13), o tipo penal da “Associação Criminosa” reside onde o mínimo para a sua configuração seja de 3 pessoas ou mais, aplicando-se às infrações penas máximas inferiores a 4 (quatro) anos.
Veja bem! O ilícito supostamente praticado pelo jornalista o fora unicamente por duas pessoas, conforme a denúncia do Ministério Público. Então, a acusação não pode ser enquadrada no dispositivo legal da Associação Criminosa, porque exige o mínimo de três partícipes; não se enquadra na Lei da Organização Criminosa porque exige a participação de, no mínimo, quatro membros para o cometimento da infração.
Na denúncia contra o jornalista Azevedo o órgão do Ministério Público invoca expressamente a Lei nº 12.850/13 para referendar a “delação” de Barreto. Não se assegurou, no entanto, de que é inaplicável a lei reportada por insuficiência de número de agentes delitivos investigados e denunciados. E, ainda, por conter nos respectivos dispositivos legais de reprimenda conteúdos diversos de penas cominadas.
A política criminal trazida pelo legislador brasileiro para a Organização ou a Associação Criminosa somente pode ser validada como tal com número mínimo de quatro e de três integrantes, respectivamente, devendo, ainda, ser “estruturalmente ordenada, exigindo-se um conjunto de pessoas estabelecido de maneira organizada, significando alguma forma de hierarquia (superiores e subordinados). Não se concebe uma organização criminosa se inexistir um escalonamento, permitindo ascensão no âmbito interno, com chefe e chefiados; e ter divisão de tarefas em decorrência natural de uma organização e partição de trabalho, de modo que cada um possua uma atribuição particular, respondendo pelo seu posto”. Não é o caso de Arimatéia Azevedo.
A aplicação da Lei nº 12.850/13, também chamada de Lei da Delação, somente pode ser estendida em duas situações distintas: às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; e às organizações terroristas, entendidas como aquelas voltadas para a prática dos atos de terrorismo legalmente definidos. Não se estende para o caso do jornalista.
Portanto, por ser viciada na origem, contaminada pela ilegalidade, a “delação” de Barreto pode ser considerada como prova inexistente, impondo à mesma a arguição de nulidade por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato e decorrente de decisão carente de fundamentação. Dado que o ato nulo não gera direitos.
A título de argumentação e por força do debate, uma confissão ou uma delação extorquida mediante pressão psicológica é ato investigativo ilícito e nojento, que padece, portanto, de nulidade absoluta. Naturalmente, tudo que decorrer deste ato, inclusive a acusação derivada para atingir outrem ou um terceiro, é absolutamente imprestável para os fins do Direito Penal.
Verdadeiramente, o caso Arimatéia Azevedo precisa compor as mesas de debates nas faculdades de Direito. Veja só! Francisco Barreto fez uma confissão; não fez uma delação pós-prisão. Elementarmente, há uma diferença entre confissão e delação.
Pergunta-se: “O corréu pode renunciar ao seu direito de defesa para prejudicar outrem no mesmo processo-crime?” Não, doutor! As regras do direito à ampla defesa no processo penal brasileiro são irrenunciáveis. Repita-se, irrenunciáveis! Dessa forma não se pode alegar que uma cláusula de delação possa valer porque o delator concordou e aceitou. Vejam como isso é gravíssimo!
O princípio da vedação das provas ilícitas tem como finalidade precípua estabelecer limites ao direito de provas, não permitindo a colheita em desconformidade com o ordenamento jurídico. As provas são consideradas meios de demonstrar tudo o que for alegado no processo, buscando-se a verdade dos fatos e, no final, contribuindo-se para o convencimento do juiz no momento da prolação da sentença. Basta!
Segundo o professor Humberto Theodoro Junior, quando a Constituição veda a prova obtida ilicitamente, o que tem em mira o preceito constitucional não é o fato processual em si mesmo, mas a necessidade do coibir e desestimular a violação às garantias que a Carta Magna e o ordenamento jurídico que a complementa instituíram como regras indispensáveis à dignidade humana e à manutenção do império da lei.
A propósito, diz Mariane Paródia e tantos outros constitucionalistas de escol, “é inadmissível o uso de coação em face de um denunciado para que este renuncie as suas garantias constitucionais e preste informações necessárias a um órgão acusador, com a promessa de um prêmio ao final. Mesmo porque, cabe à acusação o ônus de provar os fatos alegados na peça investigativa ou acusatória”.
Seguem os juristas para a conclusão: “Veja-se, portanto, que, uma vez pressionado a confessar, o delator perde todas suas chances de defesa. Nesse sentido, vale repisar que a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica asseguram a todo indivíduo o direito ao silêncio e de não produzir provas contra si mesmo, garantindo até o final do devido processo legal a presunção de inocência do investigado. Ainda, no que diz respeito às provas obtidas, com ofensa aos outros princípios e obtidas por meio de coação estatal, é indiscutível a carga de ilicitude que nelas contém, não podendo, assim, serem admitidas no processo, tampouco em consonância com outras provas”.
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